Copiei de Nélio Spréa
Ainda em choque com a situação, deixo aqui pequenas centelhas de luz no lusco fusco dos fatos, pois clarear as coisas no todo não me cabe, nem tampouco sou eu digno da altivez daquela gente para estar aqui, em nome deles, falando com maior exatidão qualquer coisa. Posso no entanto contar algo porque eu estava lá no acampamento, com as crianças da Escola Itinerante do MST, produzindo um documentário do qual estão participando escolas de diversos contextos socioeconômicos. Comigo, estava também a equipe de gravação. Não temos imagens da tragédia. Não estávamos no local em que tudo aconteceu, mas pude conversar com os feridos na sequência do ocorrido e ver as condições em que se encontrava a caminhonete deles, completamente alvejada por balas.
Quero dizer antes de mais nada que tenho um amor aqui dentro me estrangulando, querendo sair. Se para alguns a exacerbação dos ânimos culmina em ódio, comigo ocorre algo na direção contrária. É o amor que me exacerba os âmagos e me tira o sono.
Preciso dizer também que tenho uma obsessão pelo diálogo. Às vezes alguém me avista lá em cima do muro, o grande muro que separa pessoas. O muro representa a falta de habilidade de irmos ao encontro do outro pra dialogar. Quando perdemos esta condição de superar o muro e ir na direção do outro para compreendê-lo, é porque já estamos decididos a nos separar dos outros. No meu caso, não sei se por sanidade, ou se por demência, o outro gera fascínio.
Eu acho mesmo que peguei o jeito de escalar o grande muro que separa pessoas. Eu vivo subindo lá. Eu preciso sempre ver o que há do outro lado. Se estou aqui, me pergunto sobre como é o outro lado, e pra lá eu vou. Por isso, estou sempre passando ali por cima do grande muro, de lá pra cá, daqui pra lá, pra poder acessar o outro lado. E as pessoas, às vezes, me avistam bem no momento em que estou lá em cima, que é onde a gente se torna mais visível.
Mas não dá pra saber direito o que existe no além-muro sem superá-lo, sem ir ao encontro do outro. E não adianta você apontar o dedo e me dizer o que tem lá. Eu tenho que descer e chegar perto. Eu prefiro mesmo estar em constante movimento. Eu escalo o muro, avisto o outro lado, mas não consigo ficar lá em cima apenas observando. Eu tenho uma ânsia de ir na direção das pessoas para conhecê-las.
E quando já lá do outro lado estou, circulando, conhecendo, trocando, não sinto necessidade de cravar os pés ali, travando meu movimento. Pelo contrário, o desejo de compartilhar as novas referências ali colhidas, as descobertas, me impulsiona ainda mais o movimento. Ficar travado em um dos lados me esvaziaria o amor, porque o amor que aprendi a cultivar só pode ser abastecido diante da descoberta da diferença. É a compreensão da diferença que, no meu caso, produz amor.
Entendo que, em situações limite, essa escalada a que simbolicamente me refiro, esse movimento de superar o muro, torna-se cada vez mais difícil. Pedras grandes e pontudas voam por cima do grande muro que separa pessoas, porque um lado está tentando acabar com o outro. E se você vai passar ali por cima, uma das pedras vem e te arregaça. Aí você cai de lá de cima. E, por nunca ter cravado o pé daquele lado em que você caiu, agora pode ser que ninguém mais te reconheça ali.
Bem, dito isso, menciono a seguir impressões sobre o que eu e a equipe do documentário vivenciamos em Quedas do Iguaçu, na cidade e no acampamento Dom Tomás Balduíno, onde há cerca de um ano vivem 1.500 famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais, com suas crianças, com seus bebês, com seus sonhos de melhoria das condições precárias de vida nas quais, muitos ali, sempre estiveram.
- Conforme relato dos cerca de 25 homens e mulheres que estavam presentes no local da tragédia, não houve um confronto, mas sim uma ação violenta contra eles e a consequente tentativa de fuga dos trabalhadores. Na versão da polícia, que é a que predomina nos noticiários e cai no gosto popular, os trabalhadores sem terra fizeram uma emboscada. Quem faz a emboscada atira, ataca, certo? E quem sofre a emboscada é atacado, sim? Os tiros, se não matam, deixam muitas evidências, ainda mais envolvendo tanta gente. No entanto, não temos notícias de policiais ou seguranças da Araupel feridos ou mortos, nem marcas de bala em viaturas da polícia. Os feridos e mortos foram os trabalhadores rurais. Vi os feridos sendo trazidos de volta para o acampamento, com tiros nas costas. Os tiros foram nas costas, na parte de trás da perna, nas nádegas, etc, porque eles corriam enquanto estavam sendo baleados. Vi a caminhonete que os carregava, toda perfurada com buracos de bala. Não há como precisar exatamente como as coisas se deram lá, mas uma coisa é certa, a ideia de que foi uma emboscada feita pelos sem terra não se sustenta, não condiz com o que pude ver lá.
- O tal apagar do incêndio, razão pela qual a polícia e os seguranças da Araupel teriam entrado na área deste acampamento, está sendo amplamente questionado pelos trabalhadores. Eles suspeitam tratar-se de uma armadilha que os atrairia pra lá. No momento em que por lá passaram, foram surpreendidos pela polícia entrincheirada, que não estabeleceu nenhum tipo de diálogo com o grupo, e avançou atirando, conforme me relataram alguns trabalhadores que conseguiram escapar.
Algumas informações obtidas na cidade podem também ajudar a pensar o caso.
- Havia um grande número de policiais na cidade nos últimos dias. Os hotéis estavam lotados. Muitas viaturas da Rotam - PR circulavam pela cidade. Não tenho informações amplas sobre as razões de tamanha mobilização do efetivo estadual nessa pequena e pacata cidade. Mas ela coincide com uma série de outros procedimentos do governo estadual no sentido de reunir força policial na região, como a nomeação do novos secretário de segurança e a saída recente da Força Nacional de Segurança que lá estava a pedido do governador.
- Consegui no mesmo dia da tragédia conversar com policiais no centro da cidade, em frente ao hospital que socorria os feridos. Eles não tinham como passar muitas informações sobre o ocorrido, mas não puderam esconder em suas expressões a perplexidade, a incerteza, talvez até o medo. Muitos deles, assim como muitos de nós, não encontraram em suas histórias de vida condições suficientes de reflexividade para que pudessem, por si mesmos, compreender quem são os trabalhadores sem terra, como se organizam no cotidiano e como cultivam valores fundamentais de socialidade. Não tenho dúvidas de que estes homens policiais, também pais de família e trabalhadores, são também, de algum modo, vítimas de uma estrutura maior, política, econômica, que nos recobre de tal modo, que nem mesmo conseguimos senti-la, quanto mais compreendê-la.
- Os pais de algumas crianças da Escola comentaram que, nas últimas duas semanas, estavam evitando ir à cidade, pois com a saída da Força de Segurança Nacional, as abordagens policiais se intensificaram e muitos jovens trabalhadores estavam sendo agredidos e humilhados nas revistas feitas pela polícia militar do Estado do Paraná.
- Pude notar surpreso que a presença da polícia na cidade estava desencadeando um incomodo nos moradores de Quedas do Iguaçu que, não de forma unânime, vêm com bons olhos os trabalhadores sem terra. Conversei com comerciantes e empresários da região central da cidade durante os dias que passamos lá. Me surpreendeu a ampla aceitação e o bom convívio que se dá entre eles e os acampados. Por mais precária que seja a condição econômica dos acampados, a presença deles gera aquecimento da economia local. Perguntei se havia muitos assaltos na região e me disseram que sempre houveram situações de criminalidade na cidade, mesmo antes da chegada do MST. Com a chegada deles, não houve aumento da criminalidade. O fato é que, do ponto de vista de muitos comerciantes, é notável a diferença entre o antes e o depois. A expectativa pela desapropriação e concessão das terras é grande, pois toda renda gerada com o uso daquelas terras ficará na cidade, fortalecendo a economia local, o que pode gerar benefícios de toda ordem pra comunidade.
- Ouvi também depoimentos que invertem a velha lógica da exclusão sistemática dos mais vulneráveis pelos mais favorecidos economicamente, como o que me relatou um morador, em frente ao hospital que recebia os feridos. Eu me aproximei dele e puxei conversa. Talvez pelo fato dele estar muito bem vestido e ter saído de um carro de alto valor financeiro, supus que ouviria dele uma versão daquelas que imediatamente criminaliza e condena os mais fracos. Engano. Pude ouvir ele me dizer que a culpa não foi dos policiais, não foi dos trabalhadores, mas da Secretaria de Segurança do Estado, que decidiu colocar à disposição da Araupel um grande efetivo policial, porque o novo Secretário de Segurança foi eleito deputado nas últimas eleições com recurso doado pela Araupel. Dizia ele também que o secretário de segurança do estado foi nomeado com a tarefa de resolver a questão agrária em Quedas do Iguaçu.
Parece óbvio o que vou dizer, parece mesmo simples de compreender, chega a ser meio infantil afirmar isso... Mas não é! Não está ao alcance de muita gente grande a compreensão de que a questão agrária em Quedas do Iguaçu, ou em qualquer outro lugar do mundo, jamais poderá ser resolvida por uma Secretaria de Segurança ou por uma força policial. Pelo contrário, o uso das forças repressivas e da violência tendem a intensificar a problemática agrária, amplificando os conflitos e aumentando significativamente a criminalidade a curto e longo prazo.
Eu aqui escrevendo, mas nada me alivia. As palavras esfriam na mesma hora que vão pro texto. Permanece aquecida, em brasa, nas vísceras, a dor de ter presenciado a perda, a morte de inocentes.
Passa como um tormento em minha cabeça a imagem da tristeza de uma das esposas, agora viúva, ao ver a caminhonete chegando alvejada de balas, retirar de dentro da cabine o boné de seu companheiro, apertá-lo contra o peito, cair de joelhos no chão.
Em meio ao desespero que se espalhou no acampamento, um menino que tinha acabado de gravar conosco, me abraçou, chorou e disse: Tio, eles mataram nós, eles mataram nós...
As pedras estão nesse momento voando de um lado ao outro. Eu fui atingido nas pernas e confesso que pensei que não caminharia mais. Mas a escalada do muro me inspira. Mesmo mancando, eu vou continuar escalando. Eu vou transcender o muro. Eu vou continuar levando comigo cada vez mais gente nesta travessia para os outros lados, para o encontro com o diferente, até que possamos usar novamente as pedras que hoje machucam para adornar essa grande terra que nos une.
Ainda em choque com a situação, deixo aqui pequenas centelhas de luz no lusco fusco dos fatos, pois clarear as coisas no todo não me cabe, nem tampouco sou eu digno da altivez daquela gente para estar aqui, em nome deles, falando com maior exatidão qualquer coisa. Posso no entanto contar algo porque eu estava lá no acampamento, com as crianças da Escola Itinerante do MST, produzindo um documentário do qual estão participando escolas de diversos contextos socioeconômicos. Comigo, estava também a equipe de gravação. Não temos imagens da tragédia. Não estávamos no local em que tudo aconteceu, mas pude conversar com os feridos na sequência do ocorrido e ver as condições em que se encontrava a caminhonete deles, completamente alvejada por balas.
Quero dizer antes de mais nada que tenho um amor aqui dentro me estrangulando, querendo sair. Se para alguns a exacerbação dos ânimos culmina em ódio, comigo ocorre algo na direção contrária. É o amor que me exacerba os âmagos e me tira o sono.
Preciso dizer também que tenho uma obsessão pelo diálogo. Às vezes alguém me avista lá em cima do muro, o grande muro que separa pessoas. O muro representa a falta de habilidade de irmos ao encontro do outro pra dialogar. Quando perdemos esta condição de superar o muro e ir na direção do outro para compreendê-lo, é porque já estamos decididos a nos separar dos outros. No meu caso, não sei se por sanidade, ou se por demência, o outro gera fascínio.
Eu acho mesmo que peguei o jeito de escalar o grande muro que separa pessoas. Eu vivo subindo lá. Eu preciso sempre ver o que há do outro lado. Se estou aqui, me pergunto sobre como é o outro lado, e pra lá eu vou. Por isso, estou sempre passando ali por cima do grande muro, de lá pra cá, daqui pra lá, pra poder acessar o outro lado. E as pessoas, às vezes, me avistam bem no momento em que estou lá em cima, que é onde a gente se torna mais visível.
Mas não dá pra saber direito o que existe no além-muro sem superá-lo, sem ir ao encontro do outro. E não adianta você apontar o dedo e me dizer o que tem lá. Eu tenho que descer e chegar perto. Eu prefiro mesmo estar em constante movimento. Eu escalo o muro, avisto o outro lado, mas não consigo ficar lá em cima apenas observando. Eu tenho uma ânsia de ir na direção das pessoas para conhecê-las.
E quando já lá do outro lado estou, circulando, conhecendo, trocando, não sinto necessidade de cravar os pés ali, travando meu movimento. Pelo contrário, o desejo de compartilhar as novas referências ali colhidas, as descobertas, me impulsiona ainda mais o movimento. Ficar travado em um dos lados me esvaziaria o amor, porque o amor que aprendi a cultivar só pode ser abastecido diante da descoberta da diferença. É a compreensão da diferença que, no meu caso, produz amor.
Entendo que, em situações limite, essa escalada a que simbolicamente me refiro, esse movimento de superar o muro, torna-se cada vez mais difícil. Pedras grandes e pontudas voam por cima do grande muro que separa pessoas, porque um lado está tentando acabar com o outro. E se você vai passar ali por cima, uma das pedras vem e te arregaça. Aí você cai de lá de cima. E, por nunca ter cravado o pé daquele lado em que você caiu, agora pode ser que ninguém mais te reconheça ali.
Bem, dito isso, menciono a seguir impressões sobre o que eu e a equipe do documentário vivenciamos em Quedas do Iguaçu, na cidade e no acampamento Dom Tomás Balduíno, onde há cerca de um ano vivem 1.500 famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais, com suas crianças, com seus bebês, com seus sonhos de melhoria das condições precárias de vida nas quais, muitos ali, sempre estiveram.
- Conforme relato dos cerca de 25 homens e mulheres que estavam presentes no local da tragédia, não houve um confronto, mas sim uma ação violenta contra eles e a consequente tentativa de fuga dos trabalhadores. Na versão da polícia, que é a que predomina nos noticiários e cai no gosto popular, os trabalhadores sem terra fizeram uma emboscada. Quem faz a emboscada atira, ataca, certo? E quem sofre a emboscada é atacado, sim? Os tiros, se não matam, deixam muitas evidências, ainda mais envolvendo tanta gente. No entanto, não temos notícias de policiais ou seguranças da Araupel feridos ou mortos, nem marcas de bala em viaturas da polícia. Os feridos e mortos foram os trabalhadores rurais. Vi os feridos sendo trazidos de volta para o acampamento, com tiros nas costas. Os tiros foram nas costas, na parte de trás da perna, nas nádegas, etc, porque eles corriam enquanto estavam sendo baleados. Vi a caminhonete que os carregava, toda perfurada com buracos de bala. Não há como precisar exatamente como as coisas se deram lá, mas uma coisa é certa, a ideia de que foi uma emboscada feita pelos sem terra não se sustenta, não condiz com o que pude ver lá.
- O tal apagar do incêndio, razão pela qual a polícia e os seguranças da Araupel teriam entrado na área deste acampamento, está sendo amplamente questionado pelos trabalhadores. Eles suspeitam tratar-se de uma armadilha que os atrairia pra lá. No momento em que por lá passaram, foram surpreendidos pela polícia entrincheirada, que não estabeleceu nenhum tipo de diálogo com o grupo, e avançou atirando, conforme me relataram alguns trabalhadores que conseguiram escapar.
Algumas informações obtidas na cidade podem também ajudar a pensar o caso.
- Havia um grande número de policiais na cidade nos últimos dias. Os hotéis estavam lotados. Muitas viaturas da Rotam - PR circulavam pela cidade. Não tenho informações amplas sobre as razões de tamanha mobilização do efetivo estadual nessa pequena e pacata cidade. Mas ela coincide com uma série de outros procedimentos do governo estadual no sentido de reunir força policial na região, como a nomeação do novos secretário de segurança e a saída recente da Força Nacional de Segurança que lá estava a pedido do governador.
- Consegui no mesmo dia da tragédia conversar com policiais no centro da cidade, em frente ao hospital que socorria os feridos. Eles não tinham como passar muitas informações sobre o ocorrido, mas não puderam esconder em suas expressões a perplexidade, a incerteza, talvez até o medo. Muitos deles, assim como muitos de nós, não encontraram em suas histórias de vida condições suficientes de reflexividade para que pudessem, por si mesmos, compreender quem são os trabalhadores sem terra, como se organizam no cotidiano e como cultivam valores fundamentais de socialidade. Não tenho dúvidas de que estes homens policiais, também pais de família e trabalhadores, são também, de algum modo, vítimas de uma estrutura maior, política, econômica, que nos recobre de tal modo, que nem mesmo conseguimos senti-la, quanto mais compreendê-la.
- Os pais de algumas crianças da Escola comentaram que, nas últimas duas semanas, estavam evitando ir à cidade, pois com a saída da Força de Segurança Nacional, as abordagens policiais se intensificaram e muitos jovens trabalhadores estavam sendo agredidos e humilhados nas revistas feitas pela polícia militar do Estado do Paraná.
- Pude notar surpreso que a presença da polícia na cidade estava desencadeando um incomodo nos moradores de Quedas do Iguaçu que, não de forma unânime, vêm com bons olhos os trabalhadores sem terra. Conversei com comerciantes e empresários da região central da cidade durante os dias que passamos lá. Me surpreendeu a ampla aceitação e o bom convívio que se dá entre eles e os acampados. Por mais precária que seja a condição econômica dos acampados, a presença deles gera aquecimento da economia local. Perguntei se havia muitos assaltos na região e me disseram que sempre houveram situações de criminalidade na cidade, mesmo antes da chegada do MST. Com a chegada deles, não houve aumento da criminalidade. O fato é que, do ponto de vista de muitos comerciantes, é notável a diferença entre o antes e o depois. A expectativa pela desapropriação e concessão das terras é grande, pois toda renda gerada com o uso daquelas terras ficará na cidade, fortalecendo a economia local, o que pode gerar benefícios de toda ordem pra comunidade.
- Ouvi também depoimentos que invertem a velha lógica da exclusão sistemática dos mais vulneráveis pelos mais favorecidos economicamente, como o que me relatou um morador, em frente ao hospital que recebia os feridos. Eu me aproximei dele e puxei conversa. Talvez pelo fato dele estar muito bem vestido e ter saído de um carro de alto valor financeiro, supus que ouviria dele uma versão daquelas que imediatamente criminaliza e condena os mais fracos. Engano. Pude ouvir ele me dizer que a culpa não foi dos policiais, não foi dos trabalhadores, mas da Secretaria de Segurança do Estado, que decidiu colocar à disposição da Araupel um grande efetivo policial, porque o novo Secretário de Segurança foi eleito deputado nas últimas eleições com recurso doado pela Araupel. Dizia ele também que o secretário de segurança do estado foi nomeado com a tarefa de resolver a questão agrária em Quedas do Iguaçu.
Parece óbvio o que vou dizer, parece mesmo simples de compreender, chega a ser meio infantil afirmar isso... Mas não é! Não está ao alcance de muita gente grande a compreensão de que a questão agrária em Quedas do Iguaçu, ou em qualquer outro lugar do mundo, jamais poderá ser resolvida por uma Secretaria de Segurança ou por uma força policial. Pelo contrário, o uso das forças repressivas e da violência tendem a intensificar a problemática agrária, amplificando os conflitos e aumentando significativamente a criminalidade a curto e longo prazo.
Eu aqui escrevendo, mas nada me alivia. As palavras esfriam na mesma hora que vão pro texto. Permanece aquecida, em brasa, nas vísceras, a dor de ter presenciado a perda, a morte de inocentes.
Passa como um tormento em minha cabeça a imagem da tristeza de uma das esposas, agora viúva, ao ver a caminhonete chegando alvejada de balas, retirar de dentro da cabine o boné de seu companheiro, apertá-lo contra o peito, cair de joelhos no chão.
Em meio ao desespero que se espalhou no acampamento, um menino que tinha acabado de gravar conosco, me abraçou, chorou e disse: Tio, eles mataram nós, eles mataram nós...
As pedras estão nesse momento voando de um lado ao outro. Eu fui atingido nas pernas e confesso que pensei que não caminharia mais. Mas a escalada do muro me inspira. Mesmo mancando, eu vou continuar escalando. Eu vou transcender o muro. Eu vou continuar levando comigo cada vez mais gente nesta travessia para os outros lados, para o encontro com o diferente, até que possamos usar novamente as pedras que hoje machucam para adornar essa grande terra que nos une.
Nenhum comentário:
Postar um comentário