Copiei de Jean Wyllys
Excelente crônica política e humana do Pedro Munhoz, militante do PSOL de Minas Gerais, escrita com a dor e a memória das vítimas da tragédia de Mariana e com a coragem que precisamos para dar nome aos responsáveis e seus cúmplices.
Primeiro Ato: Abandono
Aconteceu em 2002. A casa que meus pais mantêm em Camargos, distrito de Mariana que fica a 15 quilômetros do perímetro urbano da primeira capital de Minas Gerais, havia sido invadida e roubada. Vaninha, que cuidava da casa enquanto não estávamos por lá, me ligou em casa. Meus pais que estavam viajando, não poderiam cuidar do registro da ocorrência. Coube a mim, portanto, na época um estudante de 21 anos que tinha acabado de tirar carteira, ir até o local para tomar as devidas providências. Chamei um amigo de meu pai, Antônio Rubens, para ir comigo, dirigindo, pois eu ainda não tinha segurança para pegar estrada.
Quando chegamos em Mariana, decidimos parar em uma delegacia para poupar tempo. Apesar da pouca distância entre Mariana e Camargos, a estrada de terra, estreita, sem sinalização, demandava tempo e cuidado para ser percorrida; lá não existia sinal de celular e o único telefone público do lugarejo nem sempre funcionava. Pensamos ser mais fácil comunicar o furto à polícia antes de seguirmos em direção a Camargos.
Na delegacia, a má vontade. O atendente, que torceu a boca e fechou os olhos quando nos ouviu dizer que o local da ocorrência era Camargos, nos explicou que todas as viaturas da cidade estavam com defeito e que até poderia disponibilizar dois policiais para irem conosco até o local, desde que nós os transportássemos até lá. Topamos. Dois policiais militares entraram conosco no carro e se sentaram no banco traseiro, enquanto eu e Rubens seguíamos na frente.
Entre conversas ligeiras e trechos de um silêncio constrangedor, a viagem correu normalmente, até que, diante do lixão de Mariana, que fica mais ou menos na metade do caminho entre Mariana e Camargos, vi um dos policiais cutucar o colega, empolgado.
“Tá vendo esse mato? Aqui é desova de cadáver. Vira e mexe, acham um presunto por aí. Os caras sabem que ninguém vem aqui mesmo; aí, quando eles matam alguém, jogam por aí mesmo.”
Do alto de minha inocência de estudante de Direito com 21 anos de idade, perguntei por que a polícia não montava vigilância no local, já que sabia da fama do local. O policial riu. Disse que tinham poucos homens, poucas viaturas e que os cadáveres que eram desovados ali eram de bandidos. Que não valia a pena, embora meia Mariana conhecesse a fama do trecho. Sem saber o que dizer, me calei.
A viagem seguiu, o carro singrando vagarosamente a estrada, trepidando nos buracos, fazendo subir poeira. Sempre achei o caminho entre Mariana e Camargos, depois do lixão, bastante aprazível. Até chegarmos ao aterro, a paisagem era, quase toda ela de domínio da Vale, com os barrancos escavados e nus, uma sinistra lagoa de dejetos cercada com arames, caminhões carregados de minério que iam e vinham. Ali, naquele trecho, estava representada a renda do município de Mariana, que tem o décimo maior PIB do estado, quase todo ele decorrente da mineração. Do lixão até Camargos, porém, a Mata Antlântica se cerrava e tínhamos que andar devagar para não acabar atropelando uma ou outra jaguatirica mais ousada. Em um dado trecho, víamos a parte de trás da Serra do Caraça, para onde, ao cabo, a estrada levava, depois de passar por Camargos, Bento Rodrigues, Santa Rita Durão e Catas Altas.
Um ano antes, surgia o projeto da Estrada Real, que, encabeçado pela FIEMG, prometia levar desenvolvimento para toda a região. O trecho que percorríamos com os policiais, onde havia a lagoa de dejetos da Vale, o Lixão e área de desova de cadáveres, fazia parte da Estrada Real. Consigo me recordar de alguns moradores de Camargos e Bento Rodrigues se animando com as perspectivas. As cooperativas da região começaram a ressurgir e alguns moradores passaram a ampliar a área construída de seus terrenos para construir pousadas e restaurantes. Receberiam turistas, melhorariam de vida. Alguns sonhavam com a estrada asfaltada. Quando chovia forte, os carros não passavam por ali, havia desmoronamento e gigantescos criadouros de barro, onde os automóveis atolavam. As unidades de atendimento de saúde, por exemplo, ficavam em Mariana. Se alguém se ferisse ou adoecesse em época de chuva, o transporte era, sempre, muito difícil.
Depois de um longo trecho reto, atravessamos um ribeirão com o carro. A ponte havia desabado há alguns meses com uma chuva e não havia sido substituída por outra. Depois de mais quinhentos metros, avistamos a casa de meus pais, no canto direito da estrada; a primeira do vilarejo que se avistava ao chegar de Mariana.
A janela de ferro havia sido arrancada e, por ali, entraram os assaltantes. Reviraram tudo, sacaram da parede os quadros a procura de um cofre, levaram um forno micro-ondas, uns casacos, comeram uns doces em compota, usaram o banheiro. Ajudei a inventariar as perdas e, em um dado momento, fui até o alpendre, na parte de trás da casa, fumar um cigarro. Foi quando o policial, o mesmo que conhecia a fama das proximidades do lixão, se aproximou de mim e deu um tapinha cúmplice em meu ombro. “Parece que os vagabundos gostam de um docinho, né?” perguntou, referindo-se aos doces que os invasores haviam comido. “Sim”, respondi, tentando não render assunto. Do alpendre, se via o terreno, que se estendia até um ribeirão. Eu estava olhando fixamente para frente, mas o policial continuava ali. “O terreno de vocês é grande…” disse, após algum tempo. “Fala pra sua mãe deixar uns doces preparados aí, com chumbinho. Vagabundo entra, come, morre; vocês enterram os caras aí atrás e ninguém vai perceber, ninguém vai dar falta, deve ser alguém dessa região aqui mesmo. Fiz o BO, mas não vai dar em nada. Vamo puxar o carro?”
Voltamos para Mariana em silêncio. Hoje eu saberia o que fazer a respeito da sugestão do policial; na época eu não fazia ideia. Seguindo por mais oito quilômetros para além da nossa casa, ficava Bento Rodrigues.
Naquele dia, eu aprendi que nem Camargos nem Bento Rodrigues existiam para Mariana, para o estado de Minas Gerais, para ninguém. A civilização acabava onde acabavam as terras da Vale, no lixão, onde a cidade de Mariana depositava seus dejetos orgânicos, inorgânicos e, de acordo com o policial, também os humanos.
Aconteceu, treze anos antes da lama.
Segundo ato: Prelúdio
Marquinhos, que residia em Bento Rodrigues, é pedreiro. Irmão de Vaninha, que é a caseira do sítio de minha família, ergueu, com a ajuda de apenas um auxiliar, a confortável casa de quatro quartos que costumávamos visitar nos fins de semana em Camargos. É um sujeito falador, de temperamento alegre, conhecido na região por sua competência. Fazia um tempo que não o via e fui encontrá-lo, no sábado que se seguiu ao rompimento da barreira que destruiu o povoado onde ele vivia, abrigado em um hotel de Mariana, com a esposa, Silvana, e o único filho. Na ocasião, eu estava trabalhando como voluntário, ajudando no cadastramento das vítimas. Minha mãe, que se tornou próxima do povo de Camargos e do Bento, estava comigo.
Fomos cadastrá-lo. Nossa função era inventariar os bens que ele perdeu com o mar de lama e saber de suas necessidades imediatas. Marquinhos, com os olhos marejados, nos contou que vinha sonhando com uma voz que lhe incitava a sair do Bento. Tinha o mesmo sonho com frequência e chegou mesmo a se convencer de que sair do lugarejo era uma necessidade. Silvana, no entanto, relutava: seu pai e todos os seus parentes estavam lá e ela fazia parte de uma cooperativa, lá no Bento, que vinha crescendo com a produção de compota e geleia de pimenta biquinho.
Marquinhos se emocionou diversas vezes durante a entrevista. No momento em que tomou ciência do rompimento da barreira, ele estava trabalhando em Camargos. Correu para ajudar a resgatar as pessoas que estavam perto da área atingida por lá, no local, onde antes existia uma cachoeira mansa e gostosa, com apenas três metros de queda d`água, segura para crianças, rasa. Pensou na esposa e no filho, que estavam em Bento Rodrigues. Ela se salvou com ferimentos nos braços e pernas, correndo do tsunami de lama. O filho, de quinze anos, que a ajudou e estava ileso.
Quando estávamos inventariando os bens que pereceram sob a lama da Vale, ele chorou. Em seu celular, nos mostrava fotos de tudo aquilo que ele conquistara com o seu trabalho. Ele aparece, felizão, segurando uma cerveja, em frente à vistosa churrasqueira de sua casa; orgulhoso, digitando algo no notebook que havia comprado. Nos mostrou a adega de madeira que ele mesmo tinha construído, a tv de tela plana, a geladeira nova, os armários da cozinha. Ele havia registrado tudo sem imaginar que suas conquistas pereceriam, de um momento para o outro, diante do absurdo que é uma invasão de lama.
Marquinhos, como outros, nos relatou que vinha recebendo ofertas da Samarco pelo seu terreno. A empresa estava de olho na área onde se erguia o vilarejo há anos, mas os esforços haviam se intensificado de 2013 para cá. As pessoas que ali viviam, no entanto, unidas que eram por laços de solidariedade e parentesco que podem ser frutos, inclusive, do próprio isolamento do local, não cediam.
Quando eu conheci Bento Rodrigues, quinze anos atrás, era um vilarejo como qualquer outro, mas, da última vez em que fui lá, dois ou três anos atrás, ele já se encontrava quase que circundado por um fosso, concebido pela atividade mineradora, com um acampamento de trabalhadores da Samarco ao lado.
Os tentáculos da empresa se insinuavam cada vez mais, eles estavam cada vez mais perto, batendo na porta, ansiando por entrar e saquear, esburacar, desfigurar o arraial setecentista.
Marquinhos, que ali vivia há anos, deve ter deixado esse avanço, essa invasão, gravada em seu inconsciente. A desfiguração do entorno pode ter sido aquela voz, que ele ouviu em sonho. Depois do fato acontecido, é muito fácil ser profeta, mas, para ele, o prelúdio do apocalipse já se desenhava com contornos nítidos, tão nítidos quanto os buracos no entorno de Bento Rodrigues ou as reiteradas ofertas da Samarco para esvaziar o vilarejo.
O obstáculo que a Samarco/Vale enfrentava para explorar a região da forma como ela queria, eram as pessoas que, como Marquinhos e Silvana, alimentaram a ilusão de que poderiam resistir e ali, construírem suas vidas. Mas quem pode resistir a um tsunami de lama?
Terceiro ato: Cheiro de Morte
Dona Andrina vive em uma bonita casinha do século XVIII, em Camargos, caiada de branco, com portas e janelas azuis, em Camargos. Sua casa fica bem em frente a um cruzeiro de pedra sabão. De sua janela, se vislumbra a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Camargos que, ao que consta, já teve teto pintado e imagens sacras de elevado valor. Hoje, o teto se resume a algumas vigas de madeira podres. As imagens são novas, eis que as antigas foram, em algum momento, deslocadas para lugar mais seguro (ou roubadas, nunca se sabe).
Dona Andrina e Vaninha guardam as chaves da Igreja, o que, para o povo de Camargos, é uma honra e uma gigantesca responsabilidade. Sem missas regulares há anos, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição ficava abandonada durante a maior parte do ano.
Eu me lembro de, quando jovem, subir as carcomidas escadas para a torre da igreja e encontrar por lá, em meio às fezes de ratos e pombos, instrumentos musicais enferrujados de bandas do século XIX.
Ao lado da Igreja, suntuosa em suas linhas simples, de barroco lusitano, existe um cemitério, com muros, também, caiados de branco. Lá, predominam as cruzes de madeira, mais simples. Apenas um túmulo mais ornamentado, de ardósia, ajuda a criar um certo contraste.
No adro, acontece a festa da padroeira, ocasião ímpar de encontro, com barraquinhas, música em alto-falantes, canjica grátis, quentão.
Faz tempo que ouvia que a Igreja, tombada pelo Patrimônio Histórico de Minas, ia acabar caindo por falta de cuidado. Curiosamente, mesmo com o suposto “abalo sísmico” que teria levado à ruptura de uma estrutura de engenharia do século XXI, como a barragem, a velha igreja continua lá.
A lama da Samarco não encobriu toda Camargos, apenas a área mais próxima de Bento Rodrigues, que incluía a cachoeira e algumas propriedades contíguas. Mesmo assim, o antigo arraial minerador foi evacuado pela Defesa Civil, sob a alegação de um risco que ninguém sabia explicar. Afinal, de acordo com a Samarco, a lama não é tóxica. Afinal, de acordo com a Samarco, a outra barragem não corre riscos de se romper.
Vaninha saiu e foi ficar na casa de parentes em Mariana. Ela, mulher guerreira, além de trabalhar como caseira em alguns sítios em Camargos, abriu um restaurante no lugarejo e vinha melhorando de vida com sua atividade. Vaninha tem sete filhos, sendo que o último era ainda bebê quando o marido faleceu e, aos trinta e nove anos, já era avó.
Dona Andrina, no entanto, resolveu ficar. Mais idosa, com o marido doente, não tinha para onde ir. Na sexta-feira, um dia depois do rompimento da barragem, conseguimos falar com ela ao telefone. Ela nos contou, aos prantos, do insuportável cheiro de enxofre que tomava conta de Camargos,
Outro odor, o de cadáveres apodrecidos, povoa a narrativa do povo de Bento Rodrigues. A vida que ali existia foi invadida por um cheiro de morte, por emanações infernais.
No sábado, Vaninha resolveu que, a despeito do que dizia a Defesa Civil, voltaria a Camargos. Corriam boatos de saques contra as casas vazias, tanto de Bento quanto de Camargos. Ela está de volta à sua casa. Afinal de contas, segundo a Samarco, o lugar é seguro, embora deva permanecer desocupado. Faz-se necessária agora uma dosagem de coerência. Afinal: é seguro ou não é?
Quarto ato: O andar de cima
Sobre o lixão de Mariana, que ficava ao lado do local de desova de cadáveres, antes de Camargos e Bento Rodrigues, pairavam aves altivas, de voo admiravelmente belo, mas que suscitavam nas testemunhas pequenos arrepios de terror. Não há nada de feio nos urubus, mas eles têm o condão de nos lembrar de coisas que certamente nos afligem, como, por exemplo, a finitude, a fragilidade de nossos sonhos.
Depois do rompimento da barragem, uma nova categoria de urubus começou a pairar por sobre a carniça do povo simples de Bento Rodrigues.
Um ex-governador, a pretexto de prestar solidariedade às vítimas, declarou que não era o momento de procurar culpados. Mas foi o seu preposto e sucessor quem concedeu as licenças para que se construísse a barragem que não resistiu a um imaginário sismo.
O atual governador, adversário do anterior, tentando demonstrar que era solidário à “tragédia” que se abateu por sobre um povo para quem ninguém nunca atentou, escolheu dar uma entrevista coletiva na sede do algoz, na casa da Samarco.
O desalento que disso resulta só nos prova que estamos nós, brasileiros, escolhendo entre os urubus domésticos de plumagem azul e os de plumagem vermelha. Domésticos, sim, eis que pertencem e docilmente falam em nome dos interesses da Vale, a responsável por destruir os sonhos de dezenas de pessoas e que, agora, pretendem se alimentar da carniça dos inocentes para adquirir certa substância política.
A Vale irá, gentilmente, ceder aos seus prepostos a mesma salutar dose de carniça alheia. Enquanto isso, a lama avança e, em muito breve, teremos mais carniça disponível. As aves de rapina, certamente, irão se locupletar e crescer, fortes e viçosas. E continuaremos a admirar o seu voo, passivamente, lá no alto, onde nossa voz não alcança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário