Copiei de 247
Paulo Moreira Leite
Ao decidir por 59 votos a 13 que o senador Delcídio Amaral (PT-MS) deve permanecer em prisão preventiva, conforme resolução aprovada por unanimidade pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, o Senado brasileiro preferiu jogar para a plateia da Justiça do espetáculo em vez de defender páginas mais honradas de sua história. Só para você ter uma ideia. Ao escrever a petição ao STF onde pedia a prisão do senador, o Procurador Geral da República admite que o pedido poderia ser recusado e até ser considerado uma medida descabida "em razão da vedação constitucional." Está lá, na página 44 da petição.
Enrolado em vários episódios difíceis de explicar, Delcídio foi preso na manhã de ontem, em circunstâncias incompatíveis com os direitos reservados a um parlamentar brasileiros. Como você verá nos parágrafos abaixo, não faltavam motivos para que ele fosse chamado a prestar contas a Justiça, para explicar denúncias graves. A questão é a necessidade de mantê-lo na cadeia. Ocorreram cenas graves, como invasão de seu gabinete, coleta de documentos, computadores foram levados pela Polícia Federal.
Num regime democrático, a Constituição faz exigências particulares para aceitar a prisão de deputados e senadores, que precisam ser compatíveis com a condição de representantes do povo, cujos poderes soberanos são definidos no artigo primeiro de nossa carta maior. O espírito dos constituintes não é facilitar a prisão dessas pessoas. Pelo contrário. Por seu papel político, eles podem usufruir de garantias suplementares na preservação de sua liberdade.
Para simplificar um debate complicado: um parlamentar só pode ser preso em flagrante, quando comete um crime inafiançável. Acusado de obstruir a ação da Justiça, a prisão de Delcídio, de caráter preventivo – isto é, não tem sequer prazo para terminar -- não atendeu claramente a nenhuma dessas exigências, ainda que ele tenha se envolvido em diálogos cabeludíssimos, incompatíveis com a função que desempenha na República.
Para tornar o caso ainda mais grave e deprimente, Delcídio era líder do governo no Senado e um articulador político respeitado pelos colegas da maioria dos partidos da Casa. Elogiado por lideres da oposição, a começar pelo senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), que foi vice na chapa de Aécio e chegou a dizer ontem que torcia para que o Poder Judiciário não demonstrasse sua culpa nas acusações apresentadas, Delcídio amargou uma nota de Ruy Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores. Dizendo que o PT não se sentia obrigado a "qualquer gesto de solidariedade" com Delcídio, Falcão expressou a raiva guardada por um numeroso exército de parlamentares e militantes inconformados com o comportamento do senador em 2005. Naquela época, quando ocupou presidência da CPI dos Correios, principal fonte de denúncias da AP 470, Delcídio foi acusado de mostrar-se um aliado da oposição, sem compromissos com colegas de partido, muitos deles denunciados e até condenados injustamente pelo Supremo de Joaquim Barbosa e Ayres Britto.
Dez anos depois, foi apenas uma nota contra um parlamentar que até a véspera recebia as honras possíveis e um pouco mais do partido.
Delcídio deixou inúmeras conversas gravadas – muitas de caráter especulativo – que merecem ser apuradas e investigadas. Há muitos indícios de fatos criminosos. É fácil perguntar e difícil de responder algumas questões essenciais. Além de falar, prometer, sugerir, oferecer-se para, Delcídio cometeu alguma ação criminosa, embolsou recursos indevidos, participou efetivamente de alguma atividade ilegal?
Sentindo-se ameaçado por uma possível delação premiada do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, condenado a 12 anos na Lava Jato, que poderia apontar seu envolvimento na venda da refinaria de Pasadena e outras operações ruinosas da Petrobras, Delcídio manteve vários diálogos impróprios e inaceitáveis. Apresentou-se como um político capaz de usar a própria influencia e contatos pessoais para convencer ministros do Supremo a dar um habeas corpus a Cerveró -- numa gabolice fora de lugar que ajudou a construir uma unidade contra ele na votação de ontem pela manhã, no STF.
Delcídio manteve conversas onde dizia que, depois de receber o HC, o ex-diretor deveria fugir do país. Acrescentou que deveria ter o cuidado de usar a fronteira seca do Paraguai e embarcasse para a Espanha – país onde possui uma segunda nacionalidade – a bordo de um jato Falcon, recomendável, em suas palavras, porque chegaria a Península Ibérica sem fazer escalas. Por fim, para garantir o conforto da família Cerveró, que ficaria no país, ele poderia assegurar o pagamento de uma mesada de R$ 50.000, dinheiro que não sairia de seu próprio bolso, mas dos cofres do banqueiro André Esteves, dono do BTG Pactual, também interessado em evitar que o ex-diretor abrisse o bico. Num encontro, Delcídio entregou R$ 50.000 a Bernardo Cerveró, filho do ex-diretor encarcerado, dizendo que era um presente do banqueiro.
A trama em que Delcídio tomou parte, num papel de protagonista, foi essa, com o objetivo de salvar a carreira e livrar sua cara. Percebe-se agora que muitas ideias que alimentou eram falsas ou fantasiosas demais. O capítulo final mostra um enredo de trapalhadas que guarda semelhanças com o caso dos Aloprados, que atingiu a campanha de Lula em 2006 – onde os petistas construíram armadilhas que atingiram eles próprios e serviram como uma luva para seus adversários.
"Ele percebeu que a delação premiada do Cerveró iria jogar seu mundo abaixo, carregando ambições e projetos com ele", observa um parlamentar do PT que o conhece de perto. "Ficou desesperado e passou a agir de acordo com isso."
Delcídio chegou a ser gravado em conversas quando nada fazia muito sentido. Ainda falava sobre os planos de fuga 24 horas depois do próprio Cerveró ter assinado o acordo de delação premiada, sem deixar de registrar, é claro, as denúncias contra o senador e contra o banqueiro.
Na semana passada, quando os planos se desmanchavam, a notícia sobre o envolvimento do senador na Lava Jato vazou. Num esforço para tentar impedir que o caso viesse a público, Delcídio ameaçou empregar o recém-aprovado Direito de Resposta para impedir que a TV Globo publicasse uma denúncia a seu respeito. Conseguiu impedir a notícia naquela hora mas a bomba explodiu ontem.
Gravadas pelo filho Bernardo Cerveró, as fitas serviram como prova de que Delcídio e Esteves tentavam impedir seu pai de colaborar com a Justiça. O placar do senado, ontem, demonstra uma situação política onde o Congresso se encontra na defensiva, encontrando dificuldade para se impor entre os demais poderes e defender suas prerrogativas.
Tanto as 48 páginas assinadas por Teori Zavaski, que formam a Ação Cautelar 4039, como a petição de Janot pedindo as prisões dos acusados, são menos enfáticas do que se poderia supor pelo placar do senado – e pelo discurso de apoio incondicional a uma decisão do STF.
No documento de Zavaski, fala-se de elementos que "apontam, embora de modo suposto, para a participação do senador na prática, em tese, dos delitos apontados pelo procurador geral da República." É assim? "Modo suposto", "em tese"?
Na petição de Janot, as dificuldades para encontrar bases legais para conduzir o senador para o cárcere ficam evidentes na parte final da argumentação. Depois de deixar claro que requer a prisão preventiva de Delcídio, o PGR até admite: "caso se entenda descabida a prisão preventiva do congressista, em razão da vedação constitucional (o grifo é meu)" o Procurador Geral da República requer a imposição cumulativa" de um conjunto de medidas cautelares.
O texto fala ainda "exegese corretiva" nas disposições constitucionais. Como se estivesse fazendo uma proposição que não se encaixa adequadamente ao arcabouço legal do país, a petição lembra que na Constituição norte-americana a "imunidade dos congressistas à prisão é muitíssimo mais limitada", argumento que pode ser uma grande contribuição aos debates sobre Direito Constitucional mas tem pouca serventia para enquadrar pessoas que devem ser julgadas pelas regras em vigor, elaboradas por quem tinha o direito dar conta da tarefa. Procuradores são profissionais concursados. Não são constituintes. O texto também destila uma visão discutível sobre os políticos brasileiros ("humanos, demasiado humanos"), que integra a cartilha da criminalização dos partidos políticos e suas lideranças, que é o ponto de partida natural para que tenham direitos diminuídos de qualquer maneira – mesmo que isso não esteja previsto em lei.
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