Copiei do indispensável BRASIL 247
Centenas de milhares de pessoas estão sendo forçadas a fugir depois que mais da metade da população de Gaza se refugiou na cidade fronteiriça de Rafah.
13 de maio de 2024, 16:41 h
Corram, exigem os israelenses, corram por suas vidas. Corram de Rafah da mesma maneira que correram de Gaza City, da mesma maneira que correram de Jabalia, da mesma maneira que correram de Deir al-Balah, da mesma maneira que correram de Beit Hanoun, da mesma maneira que correram de Bani Suheila, da mesma maneira que correram de Khan Yunis. Corram ou nós vamos matá-los. Vamos lançar bombas de 2.000 libras sobre seus acampamentos de barracas. Vamos pulverizá-los com balas de nossos drones equipados com metralhadoras. Vamos bombardeá-los com artilharia e tiros de tanque. Vamos derrubá-los com atiradores de elite. Vamos dizimar suas barracas, seus campos de refugiados, suas cidades e vilas, suas casas, suas escolas, seus hospitais e suas estações de purificação de água. Vamos fazer chover morte do céu.
Corram por suas vidas. Novamente e novamente. Arrumem as poucas e patéticas coisas que restaram. Cobertores. Alguns potes. Algumas roupas. Não nos importamos com o quanto vocês estão exaustos, com fome, aterrorizados, doentes, sejam velhos ou jovens. Corram. Corram. Corram. E quando vocês correrem aterrorizados para uma parte de Gaza, vamos fazer vocês darem meia volta e correrem para outra. Presos num labirinto de morte. Para frente e para trás. Para cima e para baixo. De um lado para outro. Seis. Sete. Oito vezes. Nós brincamos com vocês como ratos numa armadilha. Depois os deportamos para que jamais possam retornar. Ou os matamos.
Deixe o mundo denunciar o nosso genocídio. O que nos importa? Os bilhões em ajuda militar fluem sem controle do nosso aliado americano. Os jatos de combate. As cargas de artilharia. Os tanques. As bombas. Um suprimento interminável. Nós matamos crianças aos milhares. Matamos mulheres e idosos aos milhares. Os doentes e feridos, sem medicamentos e hospitais, morrem. Nós envenenamos a água. Cortamos o alimento. Fazemos vocês passarem fome. Nós criamos esse inferno. Nós somos os mestres. A lei. O dever. Um código de conduta. Eles não existem para nós.
Mas primeiro nós brincamos com vocês. Nós os humilhamos. Nós os aterrorizamos. Nos divertimos com o seu medo. Nos divertimos com as suas tentativas patéticas de sobrevivência. Vocês não são humanos. São criaturas. Untermenschen [sub-humanos]. Nós nos divertimos com nosso libido dominandi - nosso desejo de dominação. Vejam nossas postagens nas redes sociais. Elas se tornaram virais. Uma mostra soldados sorrindo numa casa palestina com os proprietários amarrados e vendados ao fundo. Nós saqueamos. Tapetes. Cosméticos. Motocicletas. Joias. Relógios. Dinheiro. Ouro. Antiguidades. Nós rimos da sua miséria. Nós aplaudimos a sua morte. Nós celebramos a nossa religião, a nossa nação, a nossa identidade, a nossa superioridade, negando e apagando a de vocês.
A depravação é moral. A atrocidade é heroísmo. O genocídio é redenção.
Jean Améry, que estava na resistência belga durante a Segunda Guerra Mundial e foi capturado e torturado pela Gestapo em 1943, define sadismo "como a negação radical do outro, a negação simultânea do princípio social e do princípio da realidade. No mundo do sádico, a tortura, a destruição e a morte triunfam: e tal mundo claramente não tem esperança de sobrevivência. Pelo contrário, ele deseja transcender o mundo, alcançar soberania total negando os semelhantes humanos - que ele vê como representando um tipo específico de 'inferno'."
De volta a Tel Aviv, Jerusalém, Haifa, Netanya, Ramat Gan, Petah Tikva, quem somos nós? Lavadores de pratos e mecânicos. Operários de fábrica, coletores de impostos e taxistas. Coletores de lixo e funcionários de escritório. Mas em Gaza nós somos semideuses. Podemos matar um palestino que não se despe até à roupa de baixo, caia de joelhos, suplique por misericórdia com as mãos amarradas atrás das costas. Podemos fazer isso com crianças tão jovens quanto 12 anos e homens tão velhos quanto 70 anos de idade.
Não há restrições legais. Não há código moral. Só há o êxtase intoxicante de exigir formas cada vez maiores de submissão e formas cada vez mais abjetas de humilhação.
Podemos nos sentir insignificantes em Israel, mas aqui, em Gaza, somos King Kong, um pequeno tirano em um pequeno trono. Percorremos os escombros de Gaza, cercados pelo poder de armas industriais, capazes de pulverizar em um instante blocos de apartamentos inteiros e bairros, e dizemos, como Vishnu, "agora me tornei a morte, a destruidora de mundos".
Mas não estamos satisfeitos apenas com matar. Queremos que os mortos vivos prestem homenagem à nossa divindade.
Este é o jogo jogado em Gaza. Foi o jogo jogado durante a Guerra Suja na Argentina, quando a junta militar "desapareceu" 30.000 de seus próprios cidadãos. Os "desaparecidos" foram submetidos à tortura - quem não pode chamar o que está acontecendo com os palestinos em Gaza de tortura? - e humilhados antes de serem assassinados. Foi o jogo jogado nos centros de tortura clandestinos e prisões em El Salvador e no Iraque. É o que caracterizou a guerra na Bósnia nos campos de concentração sérvios.
Essa doença esmagadora da alma nos percorre como uma corrente elétrica. Infecta cada crime em Gaza. Infecta cada palavra que sai das nossas bocas. Nós, os vitoriosos, somos gloriosos. Os palestinos não são nada. São vermes. Eles serão esquecidos.
O jornalista israelense Yinon Magal no programa "Hapatriotim" no Canal 14 de Israel, brincou que a linha vermelha de Joe Biden era a morte de 30.000 palestinos. O cantor Kobi Peretz perguntou se esse era o número de mortos por dia. A plateia irrompeu em aplausos e risos.
Colocamos latas "armadilhadas" que se assemelham a latas de comida nos escombros. Palestinos famintos são feridos ou mortos quando as abrem. Transmitimos os sons de mulheres gritando e bebês chorando de drones para atrair palestinos para fora para que possamos atirar neles. Anunciamos pontos de distribuição de alimentos e usamos artilharia e atiradores para realizar massacres.
Nós somos a orquestra neste baile da morte.
No conto de Joseph Conrad "Um Posto Avançado do Progresso", ele escreve sobre dois comerciantes brancos e europeus, Carlier e Kayerts. Eles são enviados para uma estação de comércio remota no Congo. A missão espalhará a "civilização" europeia para a África. Mas o tédio e a falta de restrições rapidamente transformam os dois homens em bestas. Eles trocam escravos por marfim. Eles se envolvem em uma disputa por suprimentos de comida em diminuição. Kayerts atira e mata seu companheiro desarmado Carlier.
"Eles eram dois indivíduos perfeitamente insignificantes e incapazes", escreve Conrad sobre Kayerts e Carlier: ... cuja existência só é tornada possível através da alta organização das multidões civilizadas. Poucos homens percebem que a sua vida, a própria essência de seu caráter, suas capacidades e suas audácias, são apenas a expressão de sua crença na segurança de seu ambiente. A coragem, a compostura, a confiança; as emoções e os princípios; todo grande e todo insignificante pensamento pertence não ao indivíduo, mas à multidão; à multidão que acredita cegamente na força irresistível de suas instituições e de seus costumes, no poder de sua polícia e de sua opinião. Mas o contato com a pura e desmitigada selvageria, com a natureza primitiva e o homem primitivo, traz um problema súbito e profundo ao coração. Traz o sentimento de ser o único do seu tipo, à percepção clara da solidão de seus pensamentos, de suas sensações - à negação do habitual, que é seguro, é acrescentada a afirmação do incomum, que é perigoso; uma sugestão de coisas vagas, incontroláveis e repulsivas, cuja intrusão que se descompõe excita a imaginação e testa os nervos civilizados dos tolos e dos sábios.
Rafah é o prêmio no final da estrada. Rafah é o grande campo de matança onde vamos matar palestinos em uma escala nunca vista neste genocídio. Nos observe. Será uma orgia de sangue e morte. Será de proporções bíblicas. Ninguém vai nos parar. Matamos em paroxismos de excitação. Somos deuses.
Chris Hedges (Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR).