Ao cumprimentar os presentes nesta patética e perigosa quermesse em louvor da Virgencita Botinuda y Airada, recordo que de 2005 a 2010, em Antonina/PR, fiz parte do Conselho Comunitário da Comarca, composto por voluntários os quais, devidamente nomeados pelo Juiz de Direito, tinham a atribuição legal de prestar assistência aos presos, dentre outras.
A carceragem da 7º DRP tinha algo como 45m², e lembro que em pleno verão de 2008, num dia havia 85 presos naquela pocilga que passava ao largo do que a Lei de Execução Penal determina como direitos de quem está encarcerado.
Duas ou três vezes por semana estávamos lá, conversando com aquelas pessoas - a maioria presa por delitos menores relacionados ao consumo e suposto tráfico de drogas - anotando suas demandas, providenciando atendimento a saúde, ou, simplesmente, ouvindo-os.
Conheci Luis Carlos Valois nessa época e, desde então, acompanho seus escritos e comentários no facebook e dele posso dizer que ainda há juízes no Brasil.
Copiei do Diário da Causa Operária
Machado Lima, promotor público nos Campos Gerais do Paraná, em 1860, em um caso de roubo, não encontrando provas suficientes para a condenação do negro Felício Pereira, pediu sua absolvição. O fato irritou tanto o juiz a ponto de o magistrado mandar registrar em ata que “suspendia a sessão de julgamento até que houvesse promotor competente” (BORBA, 1984, p. 117).
Os ânimos se exaltaram, o promotor não saiu mais do recinto, até que o juiz resolveu prender Machado Lima em flagrante por desobediência. Posteriormente, o promotor foi absolvido, mas amargou um tempo de cadeia.
De casos parecidos o passado e o presente da história do Brasil estão cheios. Ou o juiz inventa alguma represália contra o promotor que não quis prender alguém ou o promotor acha um meio para atacar o juiz que soltou quem ele, o promotor, achava que devia estar preso. Às vezes são juízes que processam juízes e promotores que processam promotores, mas sempre em prol da prisão, para se prender mais, para se evitar a soltura de quem quer que seja.
O comum é ambos, juízes e promotores, concordarem que aquela pessoa trazida algemada pela polícia e aquela indicada pelo delegado como culpada devem estar e serem mantidas presas. Quando a discordância entre prender e não prender se resolve com a prisão da pessoa, também dificilmente se vê um juiz atacando um promotor ou um promotor revidando contra o juiz.
A prisão, na prática judicial brasileira, parece mesmo a regra. As representações se repetem contra juízes e promotores que, em um caso ou outro, entenderam desnecessário o encarceramento, mas ninguém representa, processa ou acusa quem decide a favor da prisão, mesmo que o preso passe três, quatro, cinco anos entre grades e saia de lá absolvido.
A prisão é tão comum que, se o assunto for esse, a imprescindibilidade da prisão, com todos concordando, promotores e juízes podem sentar tranquilamente juntos antes ou depois da audiência para um cafezinho sem nenhum risco de que seus egos se exaltem. O único assunto ou pensamento proibido é a desnecessidade ou, mais grave, a prejudicialidade da prisão.
Não serão amigos. Amizades nesse nível de ego é muito difícil. Juízes e promotores, dentro da imagem de Schopenhauer, dos porcos espinhos no frio, precisando da aproximação para se aquecerem, são porcos espinhos de espinhos enormes. A proximidade é difícil, mas a prisão de alguém apazigua os ânimos.
Prender é algo tão fácil, tão banal, hoje em dia, que há modelos de pedido e de decretação de prisão. O delegado preenche um formulário para pedir, o promotor preenche o seu para dizer que é favorável, com o juiz preenchendo a decisão e o mandado para, voilà, mais um preso nesse caótico, lotado e promíscuo sistema penitenciário.
E o modelo não precisa lá de muita fundamentação, porque, se for para prender, o instinto fala mais alto dizendo que não haverá problema, pois, afinal, prisão é sempre precaução. É o que dizem. Prisão não é mais a perda da liberdade de uma pessoa, é o Estado se precavendo contra a culpa abstrata que paira sobre todos, podendo prender qualquer um com uma culpa um pouco mais realçada.
Há casos – pasme quem não é do direito e nunca ouvir falar – de reuniões entre delegados, juízes e promotores para combinar a melhor forma de expedição de um mandado de prisão ou um de busca e apreensão. Tudo combinado, só esquecem de convidar o advogado.
Infelizmente, falar de liberdade nos tribunais penais brasileiros é como falar de corda em casa de enforcado. Pode-se falar de prisão, regime fechado, disciplinar, diferenciado, mas da liberdade de alguém acusado é muito arriscado.
Luís Carlos Valois
Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela Universidade de São Paulo, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e da Associação de Juízes para Democracia – AJD.
Referência
BORBA, Oney B. Preconceito e violência. Editora Lítero-técnica: Curitiba, 1984.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: UNESP, 2005.
A carceragem da 7º DRP tinha algo como 45m², e lembro que em pleno verão de 2008, num dia havia 85 presos naquela pocilga que passava ao largo do que a Lei de Execução Penal determina como direitos de quem está encarcerado.
Duas ou três vezes por semana estávamos lá, conversando com aquelas pessoas - a maioria presa por delitos menores relacionados ao consumo e suposto tráfico de drogas - anotando suas demandas, providenciando atendimento a saúde, ou, simplesmente, ouvindo-os.
Conheci Luis Carlos Valois nessa época e, desde então, acompanho seus escritos e comentários no facebook e dele posso dizer que ainda há juízes no Brasil.
---xxx---
Copiei do Diário da Causa Operária
Machado Lima, promotor público nos Campos Gerais do Paraná, em 1860, em um caso de roubo, não encontrando provas suficientes para a condenação do negro Felício Pereira, pediu sua absolvição. O fato irritou tanto o juiz a ponto de o magistrado mandar registrar em ata que “suspendia a sessão de julgamento até que houvesse promotor competente” (BORBA, 1984, p. 117).
Os ânimos se exaltaram, o promotor não saiu mais do recinto, até que o juiz resolveu prender Machado Lima em flagrante por desobediência. Posteriormente, o promotor foi absolvido, mas amargou um tempo de cadeia.
De casos parecidos o passado e o presente da história do Brasil estão cheios. Ou o juiz inventa alguma represália contra o promotor que não quis prender alguém ou o promotor acha um meio para atacar o juiz que soltou quem ele, o promotor, achava que devia estar preso. Às vezes são juízes que processam juízes e promotores que processam promotores, mas sempre em prol da prisão, para se prender mais, para se evitar a soltura de quem quer que seja.
O comum é ambos, juízes e promotores, concordarem que aquela pessoa trazida algemada pela polícia e aquela indicada pelo delegado como culpada devem estar e serem mantidas presas. Quando a discordância entre prender e não prender se resolve com a prisão da pessoa, também dificilmente se vê um juiz atacando um promotor ou um promotor revidando contra o juiz.
A prisão, na prática judicial brasileira, parece mesmo a regra. As representações se repetem contra juízes e promotores que, em um caso ou outro, entenderam desnecessário o encarceramento, mas ninguém representa, processa ou acusa quem decide a favor da prisão, mesmo que o preso passe três, quatro, cinco anos entre grades e saia de lá absolvido.
A prisão é tão comum que, se o assunto for esse, a imprescindibilidade da prisão, com todos concordando, promotores e juízes podem sentar tranquilamente juntos antes ou depois da audiência para um cafezinho sem nenhum risco de que seus egos se exaltem. O único assunto ou pensamento proibido é a desnecessidade ou, mais grave, a prejudicialidade da prisão.
Não serão amigos. Amizades nesse nível de ego é muito difícil. Juízes e promotores, dentro da imagem de Schopenhauer, dos porcos espinhos no frio, precisando da aproximação para se aquecerem, são porcos espinhos de espinhos enormes. A proximidade é difícil, mas a prisão de alguém apazigua os ânimos.
Prender é algo tão fácil, tão banal, hoje em dia, que há modelos de pedido e de decretação de prisão. O delegado preenche um formulário para pedir, o promotor preenche o seu para dizer que é favorável, com o juiz preenchendo a decisão e o mandado para, voilà, mais um preso nesse caótico, lotado e promíscuo sistema penitenciário.
E o modelo não precisa lá de muita fundamentação, porque, se for para prender, o instinto fala mais alto dizendo que não haverá problema, pois, afinal, prisão é sempre precaução. É o que dizem. Prisão não é mais a perda da liberdade de uma pessoa, é o Estado se precavendo contra a culpa abstrata que paira sobre todos, podendo prender qualquer um com uma culpa um pouco mais realçada.
Há casos – pasme quem não é do direito e nunca ouvir falar – de reuniões entre delegados, juízes e promotores para combinar a melhor forma de expedição de um mandado de prisão ou um de busca e apreensão. Tudo combinado, só esquecem de convidar o advogado.
Infelizmente, falar de liberdade nos tribunais penais brasileiros é como falar de corda em casa de enforcado. Pode-se falar de prisão, regime fechado, disciplinar, diferenciado, mas da liberdade de alguém acusado é muito arriscado.
Luís Carlos Valois
Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela Universidade de São Paulo, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e da Associação de Juízes para Democracia – AJD.
BORBA, Oney B. Preconceito e violência. Editora Lítero-técnica: Curitiba, 1984.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: UNESP, 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário