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Antonina, Litoral do Paraná, Palestine
Petroleiro aposentado e petista no exílio, usuário dos óculos de pangloss, da gloriosa pomada belladona, da emulsão scott e das pílulas do doutor ross, considero o suflê de chuchu apenas vã tentativa de assar o ar e, erguido em retumbante sucesso físico, descobri que uma batata distraída não passa de um tubérculo desatento. Entre sinos bimbalhantes, pássaros pipilantes, vereadores esotéricos, profetas do passado e áulicos feitos na china, persigo o consenso alegórico e meus dias escorrem em relativo sossego. Comendo minhas goiabinhas regulamentares, busco a tranqüilidade siamesa e quero ser presidente por um dia para assim entender as aflições das camadas menos favorecidas pelas propinas democráticas.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Por um lugar além da faixa

mísseis israelenses no Campo de Refugiados de Burij, na Faixa de Gaza ...
(imagem copiada daqui)

(Conto classificado em 4º lugar no 
XIV Concurso de Contos da Fundação Petros - 2014)

Sonia Fernandes

Alzira avistou a mansão dos Mariones enquanto evitava rasgar suas botas nas carcaças de veículos do século vinte que ainda se encontravam nas ruas, abandonados à sua própria sorte, impedindo a passagem dos alterados e de quem mais se aventurasse. A casa continuava intacta entre os escombros da cidade, a torre do terraço com as luzes acesas. Tentou não encarar o grupo de pessoas que assava alguma coisa num canto do jardim dos Mariones. O cheiro de carne queimada impregnava o ar. Deu a volta e tomou outro rumo, pelo lado oposto, cobrindo os cabelos e parte do rosto com o pano negro das mulheres que Geíza lhe havia prometido dar, agora seu para sempre, junto com os equipamentos da missão e os doze mantos de lã. Afora a torre, só a lua iluminava a rua e o jardim da casa. O toque de recolher já havia soado há uma hora e ela sabia que se fosse pega estaria perdida. 
Encontrou a porta dos fundos aberta, como Geíza lhe disse que estaria. Com cautela, para não fazer nenhum barulho que despertasse os alterados, achou o mapa na valise e o abriu sobre a mesa. A cozinha estava deserta. Era ampla e confortável, a luz da lua vazava de uma claraboia alta. Os quartos onde eles mantinham os meninos ficava no primeiro andar. Acendeu a lanterninha de neon que trazia presa a um colar comprido e que guardava bem junto ao corpo, relíquia herdada de sua mãe e que lhe havia salvo de muitos perigos nas noites sem lua. Viu que as escadas ficavam no final do corredor depois da cozinha. Tinha algum tempo. A noite avançava devagar e só iria terminar em um dia gregoriano, mas a luz fluorescente da faixa do mar começaria em algumas horas.
Começou a montar o artefato. Havia coberto todas as peças com uma tinta de plástico, para que não fossem detectadas pelos transmissores da Família. O plano de montagem era complicado e exigia tempo. Estava com fome, mas resolveu adiar as pílulas para quando a bomba estivesse pronta. Os Mariones mantinham seguranças americanos em vários postos da mansão e um deles ficava logo depois da porta da cozinha. Tinha que pensar em se livrar de todos eles, os robôs mantinham uma linha fina entre si, se um desligasse todos viriam ao mesmo tempo. Seu coração começou a bater muito forte e ela limpou o suor da testa com o manto. Pensou nas crianças presas no quarto e foi acalmando as batidas, concentrada nas mãos que montavam as peças, uma a uma, devagar e com cuidado para evitar qualquer som.
Ninguém ia à cozinha naquela hora. Era uma informação passada por Geíza, que conhecia todos os habitantes da casa e havia vivido ali os últimos cinco anos gregorianos, cozinhando para eles e anotando o que precisava para quando chegasse a hora. “Nada vai lhe impedir, Alzira” – ela lhe havia dito. Tinha que dar conta, ela sabia, e agitou de novo a lanterna, que emitiu uma luz mais forte sobre o plano de montagem. 
Estava pronta. Cinco pequenas esferas unidas por uma corrente magnética. A faixa do mar fluorescente iria começar a emitir luz em duas horas. Agora precisava apressar-se, pois o êxito dependia do tempo planejado pelas mulheres. Abriu a porta, devagar, e os robôs dos Mariones começaram a se mover. O celular da porta apontava, como um antigo jogo de pec, os pequenos pontos redondos se locomovendo em sua direção. Deixou que eles se enfileirassem e apertou o gatilho do celular, para receber o código que destravaria a fechadura. Sabia de cor, Geíza lhe havia feito memorizar os números e letras que seriam usadas na última semana. Os robôs pararam onde estavam, no corredor que levava às escadas, e a luz de seus corpos diminuiu até se apagar completamente, um tempo que durou alguns segundos e que, para ela, pareceram uma eternidade. 
Como estariam elas agora? Os Mariones as haviam caçado no esconderijo sob a terra, em uma parte do túnel imenso que seus ancestrais construíram antes da guerra final, a fim de guardar as armas e os mantimentos para os sobreviventes, as últimas mulheres adultas e o que havia restado das crianças. Agora já nada disso lhe importava. Pensava só nelas, presas no quarto do primeiro andar, onde aguardavam o término das negociações entre os Mariones e os eleitos.
Subiu devagar as escadas, evitando ruídos que poderiam acordar os alterados, que serviam de seguranças humanos e dormiam nos outros quartos. O mapa de Geíza mostrava uma porta à sua direita como o local onde mantinham os meninos sobreviventes. Viu seus rostos apavorados quando abriu a porta do quarto. Uma luz fraca vinda da torre invadia a janela de grades e iluminava todo o lugar e eles estavam amontados num canto, sem roupas, os corpos judiados. Fez um sinal para que não falassem nada. Eles a conheciam, haviam passado por muitas coisas juntos, no túnel. Obedeciam. Arrumou-os em fila e apontou a porta aberta, as escadas, o corredor. Todo o plano dependia de não despertar os alterados. Pensou que eles não sobreviveriam ao ar gelado da noite sem os mantos que trazia, envoltos um a um em seu corpo desnutrido. Foi retirando todos e envolvendo os meninos, até que só restasse o seu próprio manto, o pano da última burca que retirou do corpo de Geíza, depois que ela havia morrido. Sabia que agora podia tomar as pílulas da fome, mas deu-as aos meninos. Assemi era o mais velho deles. Entregou-lhe o mapa de destino e a lanterna presa ao colar. Uma barca esperava nas cais do porto e eles deviam alcançá-la antes do mar começar a luzir. Os homens do sul os levariam embora, para junto das meninas que os aguardavam já em segurança, na terra prometida pelo profeta.
Quando a última sombra atravessou a porta da cozinha e se perdeu entre os escombros e as carcaças dos veículos, entrou de novo na mansão e se dirigiu aos quartos dos Mariones, as esferas presas entre seus dedos, o olhar vazio de emoções.

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