Eu visito o
Blog da Cidadania
todos os dias
"Sábado, fim da manhã, dou uma escapada do escritório. Fui trabalhar
em um dia em que costumo dedicar ao descanso porque precisava “preparar”
a viagem de negócios que começo a fazer no dia seguinte.
Preciso almoçar. Café e cigarros, ininterruptamente – consumo um e
outro sem perceber, quando trabalho ou escrevo –, fizeram-me cair a
pressão.
O bar serve uma das feijoadas mais honestas da região da Vila
Mariana. De carro, chego lá em 5 minutos. Gasto mais cinco esperando
pela comida e mais dez para comer. Antes da uma estarei de volta.
Meu escritório está na região há quase 15 anos. Vários conhecidos
freqüentam o estabelecimento em que matarei a fome. Ao chegar lá,
cumprimentam-me e me convidam a sentar à mesa repleta de garrafas de
cerveja vazias.
Hesito. São pessoas que têm por costume fazer comentários que me
desagradam. A educação, porém, fala mais alto e aceito. Encaro a turma
que têm os olhos injetados pelo álcool.
Alguns dos homens, estando todos na mesma faixa etária que eu,
mencionam a entrevista com Lula e começam a fazer piadinhas próprias da
mentalidade política e ideológica que infesta a parte de São Paulo em
que vivo.
Permaneço impassível e calado. Percebem que não estou achando graça. Um deles, menos grosseiro, resolve mudar de assunto:
– E o Rio, hein! Que tragédia!
Percebo que é outro tema que não vai prestar e me abstenho de
comentários. Dedico-me à excelente batidinha de limão que servem ali.
Um outro decide escancarar a bocona: “Sabe qual é o problema do
Rio?”. Percebendo que vem pedrada, mas já começando a me irritar,
pergunto qual seria o “problema do Rio”.
– Pretos, cara. Notou que são todos pretos?
– Todos, quem, cara-pálida?
– Todos. Bandidos, moradores da região. Tudo preto. Esse é o problema do Rio.
Reflito, antes de responder. Ao menos em uma coisa esse demente tem
razão: a tragédia carioca tem cor. Realmente, bandidos e população
atingida por eles são negros em expressiva maioria. Então respondo:
– Mas a culpa não é deles, é sua. São racistas como você que fizeram
com que mesmo depois de mais de um século do fim da escravidão os negros
continuassem mergulhados nessa tragédia…
– Mas…
– Aqueles traficantes quase todos negros, um dia foram crianças que
se inebriaram pelo poder que os bandidos exercem sobre essas
comunidades.
A mesa com seis homens de meia idade fica em silêncio, perplexa com o
que acabara de ouvir. Levanto-me, vou até o caixa, pago pela comida que
não comi, subo no carro, sem me despedir de ninguém, e vou embora sem
almoçar.
Já não havia mais fome.
Levo comigo, porém, uma certeza: a tragédia no Rio tem cor. Existe por conta dessa cor.
Aquelas populações, pela cor da pele, foram mantidas em guetos
miseráveis, longe das preocupações dos setores exíguos e preconceituosos
da sociedade que fingem que a culpa é dos governantes."
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