“Os povos que não podem ou não querem confrontar-se com seu
passado histórico estão condenados a repeti-lo.”
Dom Paulo Evaristo Arns
“As nossas mortes não são
nossas.São de vocês. Elas terão o
sentido que vocês lhe derem.”
Do filme Lamentamos Informar,
de Barbara Sonneborn
1. Em algum dia do segundo
semestre de 1974, ‘Carioca’, agente a serviço da ditadura militar, em Petrópolis,
Rio de Janeiro, no lugar conhecido como a Casa da Morte, lembra que “(...) o que viu ao entrar tirou seu fôlego.
Não, não podia ser verdade. A pulsação acelerou tanto, que o coração parecia
querer sair pela boca. Era sangue por todo o lado, impregnando o ambiente com
aquela textura pegajosa do processo de coagulação. O líquido formava pequenas
poças no chão, mas nem sinal de um corpo humano íntegro. Cheiro de carne e
vísceras. Morte recente. Sabia distinguir muito bem. Afinal, onde estava o
preso submetido à tamanha ferocidade? Demorou um pouco para juntar as peças
daquele quebra-cabeças surreal.
Mesmo ele, um agente cansado de ver a morte, de vários tipos, e as
mais diferentes formas de tortura, nunca poderia imaginar uma cena daquelas.
Chocado, sem articular uma só palavra, o estômago engulhado, percebeu que as
partes, amontoadas num canto, estavam a ponto de serem colocadas em sacos
plásticos. Isso ainda não era tudo...
Lentamente, levantou a cabeça em direção a algo pendurado em
ganchos. A princípio não distinguiu bem o que era. Um tronco, dividido ao meio.
As costelas de Capistrano pendiam do teto, e ele, reduzido a pedaços como se
fosse a carcaça de um animal abatido, pronta para o açougue. Não pode evitar a
imediata associação com uma câmara frigorífica, mas expondo um ser humano, como
ele.
Os agentes que ali estavam pareciam apenas ter esperado por ele
para completar o que haviam começado. Retiraram tudo e colocaram em sacos
plásticos, que imediatamente levaram até o porta-malas de um carro de passeio
recém-estacionado (...)” (1)
2. Em 31 de outubro de 2010,
segundo turno, Dilma Rousseff, que participou da luta armada e foi presa e
torturada pelas forças da repressão, é eleita presidente. Seu adversário, José Serra,
do PSDB, teve apoio explícito da forças de extrema-direita de diferentes extrações e
origens, incluindo militares, e até os chamados milicos de pijama, muitos
dos quais remanescentes do golpe de 1964, tendo feito campanha marcada pela
exploração do medo, dos preconceitos e da retomada de temas e expressões utilizados
fartamente nos tempos que precederam o golpe militar de 1° de abril de 1964, como
por exemplo, a ‘ameaça de uma república sindicalista”, dentre outros.
3. No início de dezembro de
2010 a mais nova turma de aspirantes a oficial formada na Aman, a Academia
Militar das Agulhas Negras, decidiu que o general Médici fosse seu patrono.
4. Terá sido mera coincidência
que, no ano em que elegemos Dilma Rousseff presidente, militante da luta armada,
a mais importante academia militar brasileira tenha decidido, assim do nada, de
repente, homenagear o mais sinistro dos ditadores militares? Coincidência ou,
como é de clareza solar, não apenas um recado, mas uma ameaça pornográfica que
os milicos estão a nos fazer?
5. Pois estamos diante de mais
um arreganho fardado e é com sentimento de obrigação pessoal e de imperioso dever
que homenageio os homens e mulheres que generosamente doaram-se tanto e tão
completamente ao sonho de transformar o Brasil, especialmente quando,
lamentavelmente, nem mesmo um governo de esquerda, do PT, teve culhões para
enfrentar e resolver o passado tenebroso e criminoso da ditadura militar, que
muita gente quer manter no esquecimento e alguns chegam mesmo a falar em perdão
ou reconciliação. Se você acha que devemos perdoar, volte lá e leia o início
deste post, meu caro. Você quer que os brasileiros perdoem essa tropa de
criminosos?
6. No que me diz respeito, espero
estar vivo para ver acontecer aqui o que os argentinos e os chilenos fizeram: julgaram,
puniram e trancafiaram até mesmo os gorilões cheios de estrelas nos ombros, os
chefões, os mandantes dos crimes todos.
7. Permitindo-me lembrar que
ainda estamos reféns dessa gente que parece considerar-se, por usar
farda, melhor do que o resto dos brasileiros, presto esta modesta homenagem como
forma de desagravo especial às famílias dos desaparecidos, tendo como fonte o
livro Dos filhos deste solo, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio (Editora
Fundação Perseu Abramo e Boitempo Editorial), de onde colhi o número de mortos
que cada organização teve e de cada uma escolhi nomes de homens e mulheres que
foram assassinados pelo fascismo do nauseabundo golpe militar de 1964.
ALN (Aliança Libertadora
Nacional, 53 mortos): LUIZ FOGAÇA BALBONI E ISIS DIAS DE OLIVEIRA,
PRESENTES!
MOLIPO (Movimento de Libertação
Popular, 19 mortos): HIROAKI TORIGO E MARIA AUGUSTA THOMAZ, PRESENTES!
PCdoB (Partido Comunista do
Brasil, 68 mortos, dos quais 58 na Guerrilha do Araguaia): CIRO FLÁVIO
SALASAR OLIVEIRA E HELENIRA RESENDE DE SOUZA NAZARETH, PRESENTES!
PCR (Partido Comunista
Revolucionário, 4 mortos): AMARO LUIS DE CARVALHO, PRESENTE!
MRT (Movimento
Revolucionário Tiradentes, 4 mortos): ADERBAL ALVES COQUEIRO, PRESENTE!
VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária, 37 mortos): EREMIAS DELIZOIKOV E ALCERI MARIA GOMES DA
SILVA, PRESENTES!
COLINA (Comando de Libertação
Nacional, 2 mortos): SEVERINO VIANA COLLON, PRESENTE!
PCB (Partido Comunista
Brasileiro, 38 mortos): DIVO FERNANDES D’OLIVEIRA E NEIDE ALVES DOS SANTOS,
PRESENTES!
PCBR (Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário, 16 mortos): JOSÉ SILTON PINHEIRO E LOURDES MARIA
WANDERLEY PONTES, PRESENTES!
MR-8 (Movimento
Revolucionário 8 de outubro, 15 mortos): RONALDO SILVEIRA PIMENTA E
MARILENE VILLAS-BOAS PINTO, PRESENTES!
VAR-PALMARES (Vanguarda Armada
Revolucionária-Palmares, 17 mortos): JOÃO DOMINGOS DA SILVA E MARIA REGINA
LOBO FIGUEIREDO, PRESENTES!
MNR (Movimento Nacionalista
Revolucionário, 10 mortos): JOSÉ MENDES DE SÁ RORIZ, PRESENTE!
M3G (Marx, Mao, Marighella e
Guevara, 3 mortos): ANGELO CARDOSO DA SILVA, PRESENTE!
AP (Ação Popular, 10
mortos): RAIMUNDO EDUARDO DA SILVA, PRESENTE!
PRT (Partido Revolucionário
dos Trabalhadores, 1 morto): JOSÉ PORFÍRIO DE SOUZA, PRESENTE!
POLOP-POC (Política
Operária/Partido Operário Comunista, 3 mortos): NELSON DE SOUZA KOHL,
PRESENTE!
PORT (Partido Operário
Revolucionário – Trotskista, 3 mortos): RUY OSVALDO AGUIAR PFUZENREUTER,
PRESENTE!
SEM
PARTIDO OU VÍNCULOS COM ORGANIZAÇÕES (mais de 100 mortos em manifestações de rua,
ou em repressão ao movimento estudantil, etc.): MARIA ANGELA RIBEIRO E LUIZ
PAULO CRUZ NUNES, PRESENTES!
(1) Taís Morais, no livro
Sem Vestígios, Geração Editorial, pg. 175. Relato feito por ‘Carioca’, agente
da repressão, em documentos entregues à autora, sobre o brutal assassinato de Davi
Capistrano da Costa, membro do Comitê Central do PCB.
7 comentários:
Bignone, Videla, Pinochet já foram
E os nossos?
É preciso que as mães daqueles brasileiros mortos pela didatura, tenham o direito de arrumar suas dores em seus ventres, mesmo postumamente.
A unica ecxplicação é que não ecxiste ecxplicação.O PT fez um acordo com s militares para conseguir chegar ao poder.Só alguns miopes militantes do partido não querem enxergar e reconhecer a patifaria.Para aqueles que morreram nos porões da ditadura só nôs resta dar os nossos pêsames.E aos militantes miopes, comprem um óculos.
Edvaldo,
Que diabo é isso? Desde quando militar, nos tempos atuais, põe e tira àquele que melhor lhe convier. Essa teoria da conspiração é equivocada e tendenciosa. O PT chegou ao poder pq assumiu uma postura de centro esquerda. Para chegar ao poder, na democracia, é preciso fazer alianças, mesmo que custe algumas baixas.
Isso não quer dizer que eu concorde, embora pense que foi menos pior assim.
É verdade, o PT, como ocorreu com a esquerda européia pós segunda guerra, assumiu uma postura mais flexível que veio a dar na social-democracia, alías, algo que Rosa Luxemburgo já defendia nos tempos de Lênin. Apesar, que nós não estamos copiando nada de ninguém, estamos adaptando-nos à nossa realidade socio-cultural e estamos governando em coalisão programática e fazendo um governo de centro-esquerda. Aos militares o quartel e nada mais, conforme reza nossa Carta Maior.
Pois eu ia pedir ao Edvaldo Olhos de Lince que me indicasse uma ótica porreta, mas Pedroso e os Amigos do Jekiti acenderam as luzes todas e, sem dó nem piedade, ainda que com contida elegância, mataram o "zóiudo" no ninho.
Quando eu crescer quero ser como esses dois.
WAULO QOBERTO KEQUINEL
THE BLIND ORNITORRINCO CORPORATION
Sempre que eu vejo estas listas oficiais de mortos pela repressão política da ultima ditadura brasileira, eu me pergunto o que aconteceu com os movimentos camponeses e sindicais. Sumiram? Onde foram parar?
E os camponeses posseiros e as várias tribos indígenas que tiveram suas terras roubadas por latifundiários e empresas multinacionais? O que aconteceu com eles?
E como, dentro do universo de pessoas presas ou sequestradas, torturadas e mortas pela polícia política e pelos esquadrões da morte, podemos distinguir as vítimas "políticas" e os "criminosos comuns" (que também eram muitas vezes vítimas, ou vão me dizer que ladrão de galinha e usuário de drogas ilícitas merecem tortura e assassinato?).
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