Os caras-pintadas de 20 de
setembro de 2011 conheceram a invisibilidade do próprio fracasso. Foi
patético, mas de um didatismo exemplar.
Por Gilson Caroni Filho (*)
O
jogo é repleto de velhos subterfúgios. A grande imprensa, na tentativa
de desconstruir o legado do governo Lula, organiza o movimento, mas não
pode revelar o sujeito do enunciado. As últimas manifestações contra a
corrupção, urdidas nas oficinas do Instituto Millenium, não evidenciam
apenas o vazio de uma oposição sem projeto. Vão além. Seus verdadeiros
objetivos são por demais ambiciosos para serem expostos à luz do dia. Na
verdade, o que se tem em mente é o combate às políticas de
redistribuição de renda e os diversos programas de inclusão social
levados a cabo nos últimos nove anos de governo petista.
Para tanto, as redações interagem com os
“indignados” das redes sociais, apresentados como protagonistas de uma
nova esfera pública singular. Sem organicidade, enraizamento e ojeriza a
qualquer coisa que remeta a práticas políticas transformadoras, os
“movimentos espontâneos” são a imagem espelhada de tantos setores que
endossam a verdadeira corrupção a ser combatida: aquela que promove a
concentração de renda, de terras e a exclusão social, além de assegurar
os privilégios das corporações midiáticas.
Mais uma vez, é preciso voltar no tempo
para apreender a dinâmica do ocultamento das taxonomias, pressuposto
básico para a eficácia do poder simbólico, da capacidade, cada vez mais
limitada, de formatar antigas agendas.
Terça-feira, 20 de março de 2007. Mais
uma vez, “empenhado” em repor a verdade factual de episódio recente da
política brasileira, Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da TV
Globo, voltava à página de “Opinião” do jornal da família Marinho. Desta
vez escreveu um artigo que tinha por título “Collor”. Como de hábito,
uma redação formalmente correta, escorreita e elegante. Como sempre, uma
petição de meias verdades. Algo como um Legacy com problemas no mapa
aeronáutico e no painel do tranponder. Se a história tomasse a forma de
um Boeing, uma colisão inevitável teria que desaparecer do noticiário do
Jornal Nacional.
Dizendo-se chocado com a “reação do
Senado ao discurso de estréia de Fernando Collor” na quinta-feira
(15/3), o jornalista abria o artigo manifestando indignação com a forma
como o ex-presidente classificou seu impeachment: “Uma litania de abusos
e preconceitos, uma sucessão de ultrajes e acúmulo de violações das
mais comezinhas normas legais”.
Para Kamel, a passividade dos senadores
deu margem a uma perigosa releitura da história. Segundo ele, o que
Collor queria caracterizar como momento de arbítrio, foi, na verdade,
“um exemplo pleno do funcionamento de nossa democracia”. Até aqui não
havia o que objetar ao texto do segundo cargo de maior importância na
hierarquia da Central Globo de Jornalismo. Os problemas começavam
quando, após relato detalhado do funcionamento da CPI e do julgamento de
Collor pelo STF, Kamel explicitava o que o levou a escrever o artigo:
“A preocupação com os jovens, que não conhecem essa história”. Se a
motivação fosse sincera, deveria, então, contar o processo histórico
inteiro, não se atendo apenas a seus momentos finais.
Teria que recordar que o ex-presidente
foi uma aposta de Roberto Marinho para dar início à desconstrução do
Estado, conforme solicitava o receituário neoliberal. O criador do maior
conglomerado de mídia e entretenimento do Brasil não hesitou em jogar
sujo para assegurar a vitória do “caçador de marajás” em 1989.
A apresentação do debate de Fernando
Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas do segundo turno da
eleição presidencial de 1989, é um exemplo dos métodos empregados por
Roberto Marinho quando resolvia intervir na política. Em matéria para o
Estado de S.Paulo (8/8/2003), José Maria Mayrink revela que…
“…Roberto Marinho não gostou da edição
que a Rede Globo fez no noticiário da tarde e determinou que o diretor
de jornalismo, Alberico Souza Cruz, reeditasse o material. Seu argumento
era que estava parecendo que Lula ganhara o debate quando, de fato, o
vencedor havia sido Collor. O episódio provocou uma crise interna na
emissora e levou o candidato do PT a dizer que perdeu a eleição por
causa da TV Globo”.
Em sua dissertação de mestrado, “Marajás
e Caras-Pintadas: a memória do governo Collor nas páginas de O Globo”, o
professor e jornalista Luis Felipe Oliveira mostra como a mídia
construiu representações identitárias que marcaram o período Collor, da
ascensão ao impeachment. Da necessidade de apresentar, acatando a agenda
do neoliberalismo ascendente, o serviço público como algo oneroso,
inoperante e injusto, nasceu a funcionalidade do “marajá”. Um construto
tão eficaz quanto simplificador.
Para os fins deste artigo, é
interessante reproduzir como a Globo afirma suas representações negando o
princípio do contraditório. Segundo Luis Felipe…
“…no esforço de representar o marajá,
foi preciso evitar que as pessoas identificadas como tal pudessem
apresentar ao leitor a sua versão. Nas poucas oportunidades em que
permitiu aos acusados o direito de se manifestar, O Globo selecionou e
redigiu de tal forma as informações que elas acabavam por corroborar as
denúncias das quais os servidores estariam se defendendo. Recursos como
este não foram usados apenas com os supostos marajás. Os governadores
que não aderiram à caça também eram apresentados nas matérias de O Globo
de tal maneira que suas intervenções não faziam efeito”.
O protagonismo da Globo na consolidação
da imagem de Collor junto à parcela expressiva do eleitorado foi
inegável. Marinho nunca ocultou que escondeu suas cartas. Foi enfático
quando declarou à imprensa que “até as acusações, o Collor era para mim
motivo de orgulho” (Estado de S.Paulo, 12/9/1992).
Deixemos claro que entre a Globo e
Collor não houve relação de causalidade. Um precisava do outro para
atingir seus fins. Era um típico caso de afinidade eletiva, formatado do
princípio ao fim.
Convém lembrar que as Organizações Globo
só abriram espaços para as manifestações públicas quando a
sustentabilidade de Collor se tornou inviável. Em momento algum houve
inflexão ética. Imolaram um personagem para manter intacto o projeto. Na
mobilização pelo impeachment, a conhecida antecipação histórica de
Roberto Marinho se fez presente. Os caras-pintadas eram o retorno do
movimento estudantil como farsa. A ação política teatralizada
neutralizava qualquer possibilidade contra-hegemônica. O espetáculo
sobrepujava as contradições históricas. A TV Globo aparecia como
vanguarda de um processo que, inicialmente, buscou esvaziar.
Já era possível antever, em meados de
1992, que o saldo final do movimento seria favorável às forças
conservadoras. O clamor pela ética, quando acompanhado de vazio
político, sempre produz um vaudeville burguês. A edição do Jornal
Nacional de 2/10/1992, dia do impeachment, foi o modelo acabado da
informação espetacularizada. Mostrou multidões concentradas em diversas
capitais e terminou ao som de “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso.
Ainda que reposta parcialmente, a
história da Globo e seu candidato talvez explique melhor porque, segundo
Kamel, “este é um país em que o decoro pode ser quebrado sem infringir o
Código Penal”. Sem meias verdades, encontraremos as digitais do império
de Roberto Marinho no que há de mais indecoroso no Brasil. Quem sabe,
até o próprio DNA do monopólio informativo.
E que nenhum leitor pense que, passados
18 anos, a Globo atualizou seus métodos. Continua fiel seguidora da
velha sentença de Nélson Rodrigues: “Se as versões contrariam os fatos,
pior para os fatos.” Nos critérios de noticiabilidade da emissora não há
lugar para fiascos.
Pior para os gatos-pingados que, no
vazio de suas palavras de ordem, perdidos no centro do Rio de Janeiro,
ficaram no limbo das editorias que tanto apostaram no êxito das
articulações. Os caras-pintadas de 20 de setembro de 2011 conheceram a
invisibilidade do próprio fracasso. Foi patético, mas de um didatismo
exemplar.
*Gilson Caroni Filho detém um “Traço de Mestre”.
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