Eu visito o Náufrago da Utopia
todos os dias
Capitão Carlos Lamarca, brasileiro de valor, herói do nosso povo assassinado pelos milicões abjetos da ditadura militar. |
Duas efemérides se misturaram
hoje na minha mente: o Dia da Pátria e o 40º aniversário da execução de Carlos
Lamarca, capturado com vida e abatido friamente pela repressão ditatorial no
sertão baiano, em 17 de setembro de 1971.
O que há, ainda, para se dizer
sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por suas
opções na vida e pela forma como encontrou a morte?
Foi, acima de tudo, um homem que
não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever
pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço altíssimo pela
opção que fez.
Teve grandes acertos e cometeu
grandes erros, inevitáveis numa luta travada com tamanha desigualdade de forças
e em circunstâncias tão dramáticas.
Mas, nunca impôs a ninguém
sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os
companheiros - via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da
Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável
ao de quem acaba de perder um ente querido.
Dos seus melhores momentos, dois
me sensibilizaram particularmente.
Logo depois do Congresso de
Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de
quedas, o caixa estava a zero e a rede de militantes, clandestinos em sua
maioria, carecia desesperadamente de dinheiro para manter as respectivas
fachadas - qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia
atrair atenções indesejáveis.
Mas, o chamado grupo tático fora
o setor mais golpeado pela investida repressiva. Então, quando se planejou a
expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o
pessoal experiente que sobrara não bastava para levá-la a cabo.
Eu e os sete companheiros
secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos escalados
- na enésima hora, entretanto, chegou a notícia de que o Comando me designara
para criar e coordenar um setor de Inteligência, então fiquei de fora.
Lamarca, procuradíssimo pelos
órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu
batismo de fogo. Os outros quatro comandantes tudo fizeram para convencê-lo a
não expôr-se, em nome da sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade
para com a tropa nele falava mais alto.
Depois de muita discussão,
chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências
bancárias, mas ficaria observando à distância, pronto para intervir caso
houvesse necessidade.
Houve: um guarda de trânsito,
alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão,
pronto para atingir o primeiro que saísse.
Lamarca, que tomava café num bar
a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 de competições na
bolsa capanga, mirar e desferir um tiro dificílimo - tão prodigioso que, no
mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um atirador de elite
seria capaz de acertar.
Segundo o Darcy Rodrigues, foi a
vida dele que o Lamarca salvou. O próprio, contudo, contou-nos que seria um dos
novatos o primeiro a sair.
Como resultado, a repressão teve
pretexto para fazer de Lamarca o inimigo público nº 1 - e, claro, o fez. A
imagem dele foi difundida à exaustão, obrigando-o a redobrar cuidados e até a
submeter-se a uma cirurgia plástica. Sem chiar: considerou seu ato mais do que
justificado, e justo o preço pago.
Também teve de brigar muito com
os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço
Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos
prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite
(Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Dá para qualquer um imaginar a
indignação consequente - afinal, as (dantescas) circunstâncias reais da morte
do Bacuri eram por eles conhecidas.
Mesmo assim Lamarca não arredou
pé, usando até o limite sua autoridade para evitar que a VPR desse aos inimigos
o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem
Aldo Moro.
O episódio foi tão traumático que
ele acabou deixando a VPR.
E, no MR-8, novamente divergiu da
maioria dos companheiros - quanto à sua salvação.
Pressionaram-no muito para que
saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971
nada mais havia a se fazer. Tornara-se um matadouro.
Conhecendo-o como conheci, tenho
a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta
milagrosa, mas sim pela incapacidade de conciliar a idéia de fuga com a morte e
o sofrimento de tantos militantes. Fez questão de compartilhar até o fim o
destino dos companheiros, honrando a promessa, tantas vezes repetida, de vencer
ou morrer.
Doeu - e como! - vermos os
militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais primária e repulsiva.
Mas, ele havia conquistado
plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e tomar, como homem, a
decisão sobre como queria morrer.
Merece nosso máximo respeito e
admiração.
Celso Lungaretti
No Náufrago da Utopia
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