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Antonina, Litoral do Paraná, Palestine
Petroleiro aposentado e petista no exílio, usuário dos óculos de pangloss, da gloriosa pomada belladona, da emulsão scott e das pílulas do doutor ross, considero o suflê de chuchu apenas vã tentativa de assar o ar e, erguido em retumbante sucesso físico, descobri que uma batata distraída não passa de um tubérculo desatento. Entre sinos bimbalhantes, pássaros pipilantes, vereadores esotéricos, profetas do passado e áulicos feitos na china, persigo o consenso alegórico e meus dias escorrem em relativo sossego. Comendo minhas goiabinhas regulamentares, busco a tranqüilidade siamesa e quero ser presidente por um dia para assim entender as aflições das camadas menos favorecidas pelas propinas democráticas.

domingo, 28 de abril de 2013

(Quase) em defesa da PEC nº 33: as curiosas relações entre os poderes da República, a mídia e um ilustre penetra


O Serviço de Alto Falantes Ornitorrinco lembra de Reginaldo Melhado, advogado em Londrina nos anos 80/80, sempre de trabalhadores, e da sua lucidez, da sua serenidade e da sua honestidade, e alegra-se ao saber que ele hoje qualifica a Justiça do Trabalho.
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Copiei de Sem Juízo

Reginaldo Melhado*

A votação inicial da proposta de emenda constitucional que submete ao Congresso Nacional algumas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) gerou virulenta reação dos meios de comunicação. Juízes manifestaram-se em notas oficiais, sustentando que a emenda violaria o princípio da separação dos poderes e amordaçaria o judiciário. Os meios de comunicação apressaram-se em ver na aprovação da PEC uma espécie de reação emulatória: a revanche do parlamento contra a condenação de parlamentares no famoso processo do mensalão. Totalitarismo, tirania, repristinação da ditadura do Estado Novo. Falou-se o diabo.
Diante dessa estridência toda, e já sabedor de que nem tudo que se vê nos jornais e na TV traduz a realidade, resolvi dar uma olhada na tal PEC nº 33/2011. Qual não foi minha surpresa ao ver que muitos juristas e magistrados talvez nem mesmo tenham lido a proposta, que parece bastante razoável e deveria ser debatida seriamente, sem preconceitos. Se fosse dado a este escrevinhador bissexto votar, como membro do que já se chamou de centro de picaretagem – o excelso parlamento brasileiro –, ele não aprovaria a emenda, pois ela, com o perdão do lugar comum, talvez seja pior do que o soneto. Mas a proposta não tem nada de antidemocrático, não ofende a separação dos Poderes, não macula o STF e nem tem qualquer relação, direta ou indireta, com os processos criminais que passam na televisão. Ao diante, algumas impressões sobre seus três núcleos.
1. A emenda institui quórum qualificado para a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais. Com a PEC nº 33, seriam necessários quatro quintos dos membros da Corte. Hoje, a Carta impõe apenas a maioria absoluta. No Supremo, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei pode ser decidida por seis a cinco. No controle concentrado de constitucionalidade, isso significa, por exemplo, que uma emenda constitucional aprovada por três quintos dos votos dos deputados e senadores cai por terra com o voto de um juiz (ou seis juízes, se se quiser). O atual sistema, portanto, deveria mesmo ser aprimorado. Quatro quintos talvez seja muito (não no STF, mas nos tribunais ou nos seus órgãos especiais). Mas a maioria absoluta, no STF, é questionável.
2. A proposta de emenda constitucional também trata da súmula vinculante. Estabelece que só depois de aprovação pelo Congresso Nacional ela entra em vigor. Aqui se levantam vozes vociferadoras: estaria o parlamento interferindo na atividade jurisdicional, conspurcando o princípio da separação dos Poderes da República! Com todo respeito, não há nada disso.
A proposta está coerente com o que muitos juristas sempre sustentaram (inclusive os juízes da AMB, Ajufe e Anamatra): na realidade, é a súmula vinculante quem viola a separação dos poderes, amesquinhando o Legislativo: ela tem caráter normativo e não jurisdicional. Embora se refira à validade, interpretação e eficácia de normas jurídicas, a súmula vinculante caracteriza-se pela abstratividade, generalidade, imperatividade e coercibilidade. Do ponto de vista ontológico, ela não tem natureza jurisdicional. A súmula vinculante é norma jurídica, pois produz efeitos erga omnis ("eficácia contra todos e efeito vinculante"). Melhor seria acabar com ela. Dificultar sua aprovação não resolve o problema, mas a PEC cria modelo insinuante. Infundir a legitimação do parlamento (mesmo o congresso-picareta) na aprovação da súmula vinculante talvez corrija o pecado original (no sentido de que o STF legisla, não sendo poder legislativo). A proposta, aliás, devolve ao palco da política a aprovação por decurso de prazo: não sendo apreciada pelo Congresso, em 90 dias, a súmula vinculante entraria em vigor, sem mais delongas nem milongas.
3. O ponto mais polêmico são as decisões do STF nas ações diretas de inconstitucionalidade: a PEC também aqui cria um modelo curioso e sugestivo, que nada tem de autoritário e haveria de ser ponderado de forma judiciosa. Ela estabelece que a decisão declaratória de inconstitucionalidade do STF deve ser submetida de imediato à chancela do Congresso. Se o parlamento (por 3/5 dos seus votos, em reunião unicameral) se manifestar contra a decisão do STF, a matéria então seria submetida à consulta popular. O eleitor, o povo, apareceria na cena política. Novamente, aqui, bradam os juristas e jornalistas contra esse suposto ataque à independência e à autonomia do Judiciário.
De novo, também nesse ponto, a reflexão carece de análise crítica e profunda. Do ponto de vista da filosofia jurídica, a proposta remete a uma discussão instigante: a natureza da decisão do STF na declaração de inconstitucionalidade da lei. Para Hans Kelsen – jurista insuspeito de militar a favor da esquerda totalitária e corrupta –, o tribunal constitucional não exerce jurisdição, em sentido técnico, ou ontológico, ao declarar a lei inconstitucional. Ele atua como "legislador negativo". Tanto que, para o filósofo austríaco – pai do positivismo jurídico –, o Tribunal Constitucional sequer integra o Poder Judiciário e é formado por representantes da sociedade. Esse conceito, que não é defendido apenas por Kelsen, influenciou o que muita gente chama de "modelo europeu" (segundo o qual, a decisão da corte constitucional não é declaratória e sim constitutiva. A lei tem vigência plena até ser considerada inconstitucional, com efeitos ex nunc).
Com efeito, ao ser a matéria "devolvida" ao Congresso, não há conflito entre poderes, e tampouco intervenção de um na esfera de domínio do outro. Na realidade, o modelo criado na PEC nº 33 cria um sistema original, distinto dos paradigmas norte-americano, europeu ou francês. Montesquieu provavelmente se retorceu no túmulo, ao saber dessa ideia do legislador negativo devolver a bola para o legislador positivo. Entretanto, se o problema é pensado sob a ótica do sistema jurídico europeu, é o STF quem, ao declarar a inconstitucionalidade da lei, refoge às suas funções típicas de jurisdição e invade competência alheia. É o judiciário interferindo no legislativo. A proposta de emenda constitucional cria uma ferramenta curiosa e democrática de solução de eventual confronto entre os dois poderes, ao remeter a questão à consulta do eleitor: a catálise da soberania popular. Enquanto Montesquieu torceria o nariz, Locke e Rousseau bateriam palmas.
Os juristas conservadores, não. Um deles, aliás, chegou a sustentar que o povo não deve se intrometer em discussões sobre a inconstitucionalidade das leis, por ser um problema de higidez da tecnicalidade. Como se o sistema de direito positivo fosse algo estranho ao mundo real, asséptico, infenso às inflexões políticas. Como se a constituição não fosse um documento político. Como se na festa dos juristas a consulta popular fosse um penetra, sempre obliterado na relação dos convidados ao debate. Dos argumentos contrários à proposta, esse é sem dúvida o mais simplista e condenável.
Como se vê, não há na PEC nº 33 algo de totalitário, invasivo, canhestro. Não é um projeto maravilhoso, mas sua originalidade e a relevância do tema sugerem que ele não deveria ser discutido com tamanha superficialidade. Parodiando Dworkin, as pessoas deveriam falar de direito seriamente. Ou, agora parodiando Habermas, o processo comunicativo haveria de ser sincero e honesto.
De novo, cabe sublinhar: o autor destes mal traçados rabiscos eletrônicos não emprestaria seu apoio às ideias da PEC nº 33. Não sem antes um profundo diálogo democrático e um sério aperfeiçoamento. Mas a maneira como o projeto e seu debate foram banidos peremptoriamente pelos meios de comunicação revela como a mídia se tornou um poder visceralmente totalitário e monolítico, para a infelicidade da nossa claudicante construção democrática.
*Reginaldo Melhado é Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito (Universidade de Barcelona/USP), professor da Universidade Estadual de Londrina e juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina

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