Copiei de O palpiteiro
Hebe Camargo e o respeito à vida (ou a falta dele)
Dou
aulas de Geografia há de 19 anos. Talvez poucos nomes foram tão
lembrados nas minhas aulas quanto o de Hebe Camargo. E tenho certeza de
que jamais disse algo de bom a respeito dela. Muita gente deu risada e,
de vez em quando, alguém não se continha e perguntava: "Mas por que você
não gosta dela?". Para alguns alunos eu dizia as minhas razões. Na
maior parte das vezes respondia com outra pergunta: "Por que deveria
gostar dela?", ou ainda, "Dê-me pelo menos 3 razões para gostar
dela...". Nunca me disseram uma única razão.
Ontem
Hebe Camargo morreu e não foram poucos os amigos que me avisaram.
Mensagens pelo celular, recados em caixa-postal e mais de 60
notificações no Facebook me obrigaram a dizer qualquer coisa.
A
primeira coisa que pensei foi explicar, finalmente, as razões de minha
implicância com a falecida. Mas julguei que tão importante quanto isso
seria deixar claro que não havia motivo para debochar da sua morte. Quem
respeita a vida e luta contra os abusos contra ela não tem o direito de
brincar com a morte dos outros. Eventualmente uma piada ou outra acaba
saindo, em ambiente privado, descontraído. Publicamente não é bom. E no
mundo em que vivemos é preciso cada vez mais separar o que é íntimo,
privado, daquilo que pode ser público, aberto.
E eis que aí procuro me diferenciar de Hebe Camargo. A busca pela correção naquilo que tornamos público.
Já
disse algumas vezes, para algumas turmas de alunos, que um professor
deve ter responsabilidade com aquilo que diz. Brincadeiras à parte,
manifestações racistas, preconceituosas ou que preguem qualquer tipo de
mal individual ou coletivo, devem ser combatidas, mais do que evitadas.
Na minha carreira de professor tive períodos de lecionar, semanalmente,
para centenas de alunos. Não tive o direito de pregar ódio. E procurei
ser cuidadoso com isso. Sempre, apesar de erros.
Hebe
Camargo tinha um alcance maior. Em rede nacional de TV atingia milhões
de brasileiros. Era descontraída e tinha uma capacidade de comunicação
rara. Reconhecer isso não me traz nenhuma dificuldade. Minha repulsa era
justamente o que ela fazia com essa capacidade rara de comunicação.
Quem
ler o livro "Autopsia do medo", de Percival de Souza, ficará sabendo de
muitas histórias a respeito do maior torturador do regime militar,
Sergio Paranhos Fleury. Nele saberá de ao menos uma das relações entre o
delegado torturador e Hebe Carmargo.
Fleury
se notabilizou pela capacidade de combater opositores do regime
militar, em especial os guerrilheiros. Ele era um delegado de péssima
reputação na polícia de SP, mas foi útil ao empregar suas "técnicas"
para a ditadura. Um promotor público de SP, baixinho e fisicamente
frágil, chamado Hélio Bicudo, ousou enfrentar o delegado torturador,
assassino e ocultador de cadáveres.
Hélio
Bicudo sabia que não podia enquadrar Fleury por crimes de combate a
perseguidos políticos. Usou outra estratégia. Resolveu enquadrar o
delegado pelos abusos que cometeu ANTES de ser agente da repressão
política. Fleury fazia parte de um esquema de assassinatos conhecido
como "Esquadrão da Morte", e por ele foi processado e julgado.
A
estratégia de Hélio Bicudo foi tão engenhosa que a ditadura não tinha
como livrá-lo da cadeia. A solução para a ditadura foi mudar a lei.
Inventou que réu primário não precisava necessariamente ser preso. A lei
ficou conhecida como "Lei Fleury". Criada para livrar a cara de um
delegado torturador.
No
processo contra Fleury foram arroladas testemunhas de para a sua
defesa. Uma delas foi Hebe Camargo. Fleury agenciava policiais que
trabalhavam como seguranças para cantores e gente da televisão. Por isso
era bem relacionado com gente da TV. A estratégia da sua defesa foi
impressionar o tribunal com uma figura conhecida e muito influente.
Muita
gente pode ser poupada de críticas pelo que fez ou deixou de fazer
durante a ditadura. Hebe Camargo não. Num dos momentos mais tristes da
história do nosso país ela escolheu um lado. No caso, o lado de quem não
respeitava a vida e a dignidade. E fez isso conscientemente.
No
período pós ditadura não me impressionou que Hebe apoiasse Paulo Maluf e
atacasse uma figura como Dom Paulo Evaristo Arns. Não foram poucas as
vezes em que vi Hebe Camargo protestar contra defensores de direitos
humanos.
Também
não me causou espanto vê-la no falido movimento "Cansei", aquele que
tentou explorar politicamente a dor causada pela queda do avião da TAM. O
movimento "Cansei" partiu de uma ação nojenta. Usar a morte e a
tristeza para interesses político-eleitorais. Hebe Camargo mais uma vez
não respeitou isso.
Num
país que valorizasse a vida humana e o respeito ao direito básicos de
TODOS, Hebe Camargo não teria público. Não seria proibida de falar as
bobagens e as apologias de violência que tanto apreciava. Num país mais
civilizado ela simplesmente seria ignorada.
Entendo
que uma figura como Hebe Camargo não aparecerá novamente, pela simples
razão de que a televisão já não é a mesma. Até poucos anos atrás uma
apresentadora de TV tinha um peso muito grande na opinião das pessoas,
pois não havia muitas opções. Fico muito feliz hoje em saber que meus
alunos ficam mais tempo da internet do que diante da TV. É cada vez
menor o número de pessoas que ainda assistem novela e que levam a sério
porcarias de programas como os que são apresentados na TV brasileira.
O
que lamento nessa história toda é que a saída de Hebe Camargo da TV
brasileira se tenha dado apenas por conta da sua morte. O país que
desejo para o povo seria capaz de se livrar desse tipo de conduta sem a
morte.
O
respeito à vida me obriga a continuar lutando e me manifestando nessa
direção. O respeito à vida humana que Hebe Camargo jamais demonstrou
ter.
Morreu Hebe Camargo e espero que um dia morra esse jeito nefasto e desumano de usar a TV no Brasil.
Um comentário:
Sim, pena que Hebe Camargo tenha deixado a TV brasileira agora, e não antes. Mas me parece ser uma sina brasileira que nossos "entulhos conservadores", sejam da política, mídia, artes ou o que mais, só partam quando morrem. Não os vemos presos, punidos, ou resposabilzados pelos desserviços que prestararam a sociedade. Pena....
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