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Antonina, Litoral do Paraná, Palestine
Petroleiro aposentado e petista no exílio, usuário dos óculos de pangloss, da gloriosa pomada belladona, da emulsão scott e das pílulas do doutor ross, considero o suflê de chuchu apenas vã tentativa de assar o ar e, erguido em retumbante sucesso físico, descobri que uma batata distraída não passa de um tubérculo desatento. Entre sinos bimbalhantes, pássaros pipilantes, vereadores esotéricos, profetas do passado e áulicos feitos na china, persigo o consenso alegórico e meus dias escorrem em relativo sossego. Comendo minhas goiabinhas regulamentares, busco a tranqüilidade siamesa e quero ser presidente por um dia para assim entender as aflições das camadas menos favorecidas pelas propinas democráticas.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Anotações sobre a absoluta, completa e avassaladora necessidade da poesia: viva Paulo Leminski!

O Serviço de Alto Falantes Ornitorrinco cumprimenta os romeiros presentes nesta formidável quermesse em louvor dos poetas polacos e, como diria o mais formidável poeta polaco de Curitiba, distraídos venceremos!
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Copiei do Valor Econômico
Como não fiquei amigo de Leminski
No começo dos anos de 1980, eu era aluno interno no Colégio Agrícola de Campo Mourão (noroeste do Paraná) e vinha lendo a literatura disponível nas bibliotecas públicas locais. Na estante de poesia, havia livros até os anos 1960, depois disso surgia uma grande lacuna, sequela talvez da ditadura militar, que vivia os seus estertores. Por conta disso, eu desconhecia a literatura contemporânea e tinha uma sede muito grande de participar de meu tempo, mesmo estando em um espaço nada apropriado a tais frivolidades - toda a minha família era de agricultores ou de trabalhadores subalternos, sem ou com baixa escolaridade.
Assim, eu não sabia onde ficava o tempo presente.
Não lia jornais de circulação nacional e não tinha professores e amigos com informações que pudessem me orientar na selva selvagem daquela terra vermelha. Foi em 1983 que comecei a participar do agora, por meio do informativo "Primeiro Toque", da editora Brasiliense, que tinha como slogan um verso de Walt Whitman: "Que pode haver de maior ou menor que um toque?" Essa publicação permitia que comprássemos os livros por reembolso postal, dando dicas de títulos. Foi ali que comecei a conjugar as minhas leituras no presente, recebendo informações sobre autores que seriam fundamentais nos anos seguintes, como Charles Bukowski e John Fante. Mas, entre todos os autores, o meu herói era o poeta curitibano afropolonês Paulo Leminski, que tinha a cara da revista "Primeiro Toque" e da Brasiliense.
Quando chegou a edição com uma capa pop art de "caprichos e relaxos", que vinha com o subtítulo de "saques, piques, toques & baques", entrei em êxtase com essa poesia da informalidade, mais próxima do rock do que da literatura. Nunca tinha lido um poeta que falava grandes coisas em poemas completamente diretos e intensos, que manejava a música, a materialidade da palavra e a ironia. Esse é o livro de poemas que mais li na minha vida, e funcionou como uma bíblia para mim, compulsada nos meus momentos de descrença literária.
Continuei lendo Leminski pelas traduções que ele fazia para a mesma editora e depois por meio dos autores a que ele se referia em apresentações. Para o jovem interiorano que eu era, Leminski fez de Curitiba a capital da poesia brasileira. Não havia como ser escritor morando em outro lugar. Depois de uma tentativa frustrada, mudei-me para a capital em 1987. E continuei seguidor fiel de Paulo Leminski, agora já devorando entrevistas dele em periódicos, acompanhando de perto o seu trabalho no jornal "Nicolau", no qual ele era figurinha fácil.
Discípulo autodeclarado é aquela coisa: quer porque quer ter alguma importância na vida do mestre. Sonha ser aceito e para isso tenta toda sorte de insinuação. Consegui com uma amiga em comum, a poeta Helena Kolody, o endereço do polaco e, numa carta completamente juvenil, mandei um texto para ele, datilografado na minha inseparável (até hoje) Lettera 35.
Só depois de despachar a carta, relendo os originais de meu poema, vi que havia uma crase errada. Essa talvez tenha sido uma das maiores vergonhas de minha vida de escrevinhador. Dirigir-se à pessoa que é para você o resumo da cultura - e Leminski foi isso para mim - numa linguagem inadequada era um crime de lesa-cultura. Não sei se exatamente por isso, mas o fato é que não tive mais coragem de procurar o poeta. Lembro-me que contava com a possibilidade de cruzar por ele no centro da cidade - tinha visto umas fotos dele no calçadão da rua das Flores - ou mesmo em uma livraria, principalmente na Ghiginone, onde ele lançara alguns livros. Passava na frente do Bife Sujo, um de seus lugares preferidos, mas em horários muito vespertinos para encontrá-lo.
Sabendo que ele morava - não tinha certeza se ainda continuava morando - na altura da Cruz do Pilarzinho, reduto polonês da capital paranaense, tomava o ônibus rumo a essa localidade periférica para fazer as minhas caminhadas nos fins de semana. Tinha visto fotos de Leminski correndo naquela região. Nas idas à redação do "Nicolau", perguntava ao editor, Wilson Bueno, de Leminski. Acompanhando-o de perto, não perdia seus textos e suas entrevistas, nunca estive de fato com ele.
Mas habitei Curitiba seguindo as pegadas poéticas de quem havia me tirado de uma cidade pequena e me instalado no centro das discussões sobre literatura. Eu andava com os versos dele na memória - e ainda ando. E me servia deles para abonar pontos de vista em conversas com amigos ou para refutar aquilo que não se encaixava nas teorias de meu guru.
A maior proximidade física com ele que eu consegui foi em uma palestra na Biblioteca Pública do Paraná. Ele estava na mesa com dois professores, e tratavam de tradução. A apresentação dos professores era aquela leitura monocórdia de textos bem pensados e bem pesados. Quando o poeta começou a falar, iluminou-se aquele ambiente escuro. Ele se expressava de uma maneira absolutamente eufórica. Não importava muito o que ele estava dizendo, mas a intensidade daquilo que dizia. Havia um domínio total de palco, e ele dissertava sem seguir um texto ou anotações, numa espontaneidade assustadora.
De uma coisa eu não me esqueci de sua palestra. Ele dizia que havia aprendido alemão geneticamente. O pai, na juventude, namorara uma alemã, incomunicável fora desse idioma, e se vira obrigado a estudá-lo. Leminski dizia que, como o pai manejara esse código com intenções amorosas, ele tinha uma propensão genética para aprender a língua de Goethe. Não importa a veracidade dessa história e a eficácia desse método, e sim o fato de que para o poeta uma língua e uma cultura só se entregam num estado de paixão.
Fiquei até o fim do evento, ouvi as perguntas e as respostas de todos, mas me antecipei uns minutos ao fim, saindo sem nem olhar para trás. Perdi a oportunidade tão desejada de conversar com o poeta. Talvez por covardia. Talvez para fazer que um futuro encontro fosse o grande objetivo de minha vida naqueles anos de Curitiba.
Saí pela noite, andando por ruas vazias, preenchido afetivamente por uma amizade que não se efetivara, unilateral, mas que nem por isso era menor do que qualquer outra.
Algum tempo depois, o poeta morreu sem nunca saber de minha existência. Eu passei a negá-lo porque minha vida já estava em outras latitudes. Deixei Curitiba, seguindo a carreira de professor universitário, tal como aqueles que eu achara, na mesa com meu ídolo, tão apagados.
Hoje, mais de duas décadas depois de sua morte, ele continua uma presença viva - a Companhia das Letras, aliás, está lançando nesta semana o volume "Toda Poesia". Nenhum poeta que tenha estreado nos anos 1970 exerceu tanta influência na literatura e na cultura brasileira como Paulo Leminski, que fez que Curitiba fosse paulista-concretista e ao mesmo tempo baiana, que deu nervos vanguardistas para a geração marginal e sangue africano para os experimentalismos mais frios. Leminski é o poeta brasileiro, gostemos ou não de sua poesia, mais emblemático da contemporaneidade.
Miguel Sanches Neto é escritor, autor entre outros, dos romances "Chove Sobre Minha Infância" (Record, 2012), " Chá das Cinco com o Vampiro" (Objetiva, 2008) e "A Máquina de Madeira" (Companhia das Letras, 2012)

Um comentário:

polaco doido disse...

de novo, a crase atrapalhando a vida dos pobres mortais.