Marcelo Salles/fazendomedia.com
Cartaz afixado no Morro do Alemão, em 2007
Cartaz afixado no Morro do Alemão, em 2007
Eu visito FazendoMedia todos os dias
“Dia histórico para o Rio de Janeiro”. “Dia D”. “Vitória do bem
contra o mal”. Esses foram alguns chavões utilizados pelas corporações
de mídia para descrever a incursão das “forças de segurança” ao Complexo
do Alemão, neste domingo, como a complementar a imagem da bandeira do
Brasil no alto de uma das estações do teleférico recém-construído na
favela. É incrível como se assemelham a narrativa do governo estadual e o
discurso adotado pelas Organizações Globo. Juntos comemoram vitória no
Alemão, ao tempo que varrem pra debaixo do tapete o sangue derramado no
meio da semana da passada. Acham que ninguém vai questionar?
De acordo com o Fantástico, da TV Globo, os 2.600 homens da polícia
militar, polícia civil, polícia federal, exército e marinha apreenderam
40 toneladas de maconha e 50 fuzis. No entanto, na fotografia publicada
no site do Globo aparecem apenas 3 fuzis. Os dados oficiais da operação
não foram divulgados, e as primeiras informações davam conta de 15
prisões no sábado, antes, portanto, da invasão do conjunto de favelas.
A conta não fecha. No meio da semana passada foram divulgadas,
repetidamente e com assombro, imagens de traficantes fugindo da Vila
Cruzeiro para o Alemão. Falavam em duzentos homens fortemente armados.
Dados do próprio governo dão conta de que no Alemão existiam pelo menos
mais 450 traficantes. Para onde foram os 650? Estariam entocados em
algum lugar da Serra da Misericórdia? Ou fugiram milagrosamente, já que
todas os acessos estavam fechados? O número de fuzis apreendidos
divulgado pelo Fantástico inclui os que foram encontrados na Vila
Cruzeiro? Ou estão querendo nos fazer acreditar que os bandidos os
deixaram para que fossem encontrados no Alemão? Onde foi que a TV Globo
aprendeu a somar?
E, mais importante: onde estão os corpos dos cerca de 40 mortos nas
operações realizadas na Vila Cruzeiro e no Jacarezinho, no meio da
semana passada? E os laudos cadavéricos, que podem indicar se houve ou
não execuções sumárias? Qual o nome dessas pessoas? Será possível que
nenhuma mãe tenha chorado essas mortes? Sua dor não é notícia? Seria
prudente que essas informações fossem divulgadas, inclusive para debelar
qualquer dúvida com relação à legalidade da ação policial.
Sobre as drogas que foram apreendidas, o “comentarista de segurança”
da Rede Globo frisou em todos os programas da emissora, inclusive no
Faustão: os crimes vão diminuir; a paz voltará ao Rio de Janeiro.
Duvido, por uma razão muito simples. Se a maior parte dos traficantes
varejistas está solta, e perderam grande quantidade de uma mercadoria, a
droga, o que será que eles vão fazer para recuperar o dinheiro? Fundar
um banco? Não. Apostar na Bolsa de Valores? Não. O mais provável é que
recorram a assaltos, seqüestros relâmpagos e outros crimes, muitas vezes
tão sujos quanto as opções anteriores.
As “forças de segurança”
O temido Bope parece já não ser suficiente para satisfazer o fetiche
da violência da burguesia. O baile macabro dos tanques de guerra em
favelas do Rio é um terrível precedente para todos nós que lutamos por
democracia e Direitos Humanos. Depois disso o que vem? Vale consultar os
livros de Mike Davis, sobretudo o “Planeta Favela”. Eis um trecho da
resenha, pela Boitempo Editorial:
“Cada aspecto dessa ‘nova cidade’ é analisado: informalidade,
desemprego, criminalidade; o gangsterismo dos senhorios que lucram com a
miséria; a incapacidade do Estado de oferecer infra-estrutura e casas
populares, e em contrapartida sua atuação nas remoções de
‘revitalização’ que abrem caminho para a especulação imobiliária; as
soluções ilusórias de ONGs e organismos multilaterais.
“Um ‘proletariado informal’, ainda não compreendido pelo marxismo
clássico e tampouco pelo neoliberalismo. A materialização extrema desse
conflito está no último capítulo do livro, que trata das análises do
Pentágono sobre a guerra do ‘futuro’ nas megafavelas do Terceiro Mundo, e
o presente do exército norte-americano tentando monitorar as vielas de
Sadr City, a maior favela de Bagdá”.
No Haiti, onde lidera uma missão das Nações Unidas, há alguns o
Brasil “treina” militares para usar em favelas aqui. Parece que a hora
chegou. O país onde houve a primeira revolução dirigida por escravos foi
usado para preparar a repressão militar em espaços habitados por
descendentes de escravos. É o recrudescimento da tese do “inimigo
interno”, doutrina remanescente da ditadura de 1964 que foi dissecada
pela presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, no livro
“Operação Rio – o mito das classes perigosas”, onde analisa o uso das
Forças Armadas para o policiamento da cidade durante a Eco-92.
Entre as dezenas de mortes na Vila Cruzeiro e no Jacarezinho, no meio
da semana passada, até agora não consta que as “forças da ordem” tenham
tido alguma baixa, felizmente. No entanto, este fato deveria ser mais
do que suficiente para derrubar a ideia de “guerra”, o que pressupõe
equivalência de forças e disputa pelo poder político – o que também está
fora de cogitação, pois quem trafica drogas não quer chegar ao governo,
quer apenas manter os lucros com esse negócio privado pra lá de
capitalista.
Um fato, porém, deveria inverter a tendência encampada com entusiasmo
pelas corporações de mídia, aquela que faz apresentadores de telejornal
chegarem próximos ao orgasmo: vasculhar e destruir! As mais de trinta
pessoas que morreram – incluindo uma adolescente de 14 anos e outras
três pessoas que nada têm a ver com o negócio da droga – morreram
durante operações das “forças de segurança”. Por esta razão, a Anistia
Internacional divulgou nota pedindo que as autoridades brasileiras “ajam
com força proporcional e dentro da lei”, e recorda a mega-operação
realizada em 2007 na mesma favela do Alemão.
Breve histórico
A preocupação não é infundada. Em 2007, a mega-operação policial
deixou mais de 40 mortos no Alemão, 19 num único dia, sendo que depois
da ação não houve melhora na segurança pública da região. O detalhe
perverso: uma perícia independente constatou que muitas dessas mortes
foram execuções sumárias. Eu estive lá. Passei algumas semanas
percorrendo quatro das treze favelas do Alemão, cheguei a dormir no
Morro do Alemão, favela que dá nome a todo o conjunto, que se estende
por cinco bairros da zona norte carioca. Tive a oportunidade de ouvir
cerca de 100 pessoas, e a reportagem foi publicada em cinco páginas na
edição de agosto de 2007 da revista Caros Amigos, então editada por
Sérgio de Souza. Resumo da ópera: os traficantes varejistas são cruéis,
sim, relatam os moradores, mas o medo maior é da polícia, que perpetrava
uma série de violações aos direitos humanos. Uma informação importante:
naquela ocasião, apenas uma semana depois da invasão policial o tráfico
varejista já operava normalmente.
Aqui tem algumas fotos que fiz para além da reportagem: http://www.fazendomedia.com/diaadia/protoblog6.htm
E aqui uma matéria publicada no Fazendo Media, um contraponto à
pesquisa Ibope divulgada à época, que “mostrava” apoio da “população” às
mega-operações: http://www.fazendomedia.com/novas/politica240707.htm
O papel das corporações de mídia
As corporações de mídia jogam um papel essencial em situações como
essa. Podem ser importante instrumento de denúncia contra violações dos
Direitos Humanos, da mesma forma que podem legitimar uma matança
indiscriminada. A inclinação do noticiário dependerá sempre dos
interesses da empresa que o comanda, apesar de todas se declararem
imparciais e a serviço da sociedade. Assim, não importa que as “forças
de segurança” contem com 2,6 mil homens, helicópteros, tanques de guerra
e preparação profissional, enquanto, do outro lado, seriam 600 homens,
de chinelo e bermuda. Para diluir a desigualdade, o que fazem os donos
da mídia que “adoram matadores”, conforme definição do jurista Nilo
Batista? Reproduzem “ad infinutum” as imagens da fuga cinematográfica de
bandidos da Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão.
E apresentadores de televisão perguntam, com sangue escorrendo pelos
lábios: “por que a polícia não cercou os bandidos? Não sabiam que iriam
fugir por ali?”.
Não há uma linha sequer criticando qualquer aspecto da operação
patrocinada pelo governo. Seriam anjos enviados por Deus, incapazes de
errar? Por que não se investigam as denúncias da Rede Contra a
Violência, que em nota afirma que policiais invadiram e saquearam
residências na Vila Cruzeiro? Parece que em se tratando de perseguir o
crime em áreas pobres, o olhar crítico, fundamental à prática
jornalística, dá lugar ao engajamento cego, típico dos vassalos da
ditadura.
Relato crítico de uma moradora
Neste sábado, dia 27 de novembro de 2010, parte do Alemão ficou sem
luz. A repórter da Globo tentou explicar: “por questão de segurança”.
Milhares de pessoas tiveram a energia elétrica cortada em nome da
perseguição de centenas. Quem me conta é a Renata, que mora na favela e
vem denunciando uma série de arbitrariedades em seu Facebook. E se
faltasse luz no Leblon, em quanto tempo voltaria? Mas as corporações de
mídia não irão ouvir a Renata. Usarão todo o espaço com aqueles
dispostos a corroborar a opinião que interessa às “forças da ordem”.
Acho que nem na invasão do Iraque a mídia brasileira, pelo menos a
televisiva, esteve tão “embeded”, embutida, afinada com as “forças da
ordem”.
Por outro lado, chegam informações de que os bandidos estão
expulsando moradores de suas casas e entrando à força. Que os policiais
estão pedindo comida e água para os moradores, porque o governo não lhes
fornece as necessidades básicas. Que até agora os moradores, no Alemão,
estão sendo tratados com educação pelas “forças de segurança”, que só
permitem que os moradores entrem e saiam da favela se apresentarem
documento de identidade. Seria mais honesto se todos esses aspectos
fossem mostrados, e não apenas este ou aquele.
Renata não poupa críticas à “imprensa sensacionalista, a Globo, que
não mostra a nossa situação real”. Ela conta a história de um casebre
que fica no caminho da Vila Cruzeiro para o Alemão, e que foi marcado a
partir de imagens de um helicóptero da Globo como local de traficantes.
Na verdade, a habitação pertence a Anderson e Patrícia, que são muito
pobres, mas, apesar disso, coleguinhas, não são bandidos e lá vivem com
os filhos. Resultado: os dois tiveram que fugir e estão abrigados numa
igreja próxima, já que sua casa virou alvo.
Por fim, Renata desabafa: “Estou cansada. É sempre a gente que sofre”.
Na favela, vale lembrar, não se fabricam armas e nem drogas. Por que
não perguntamos como elas chegam lá? Por que a inteligência da polícia
não detectou os incêndios? A reconfiguração da cidade para a Copa do
Mundo, os Jogos Olímpicos e os Jogos Militares estão por trás da
barbárie? Por fim, e indo além: e as mal chamadas milícias? Já se
converteram definitivamente em “milídias”, aguardando pacientemente o
fim da “guerra” para ampliar o seu “mercado” no Rio de Janeiro?
O povo brasileiro não deve se deixar iludir pela operação casada
entre governo do Rio e corporações de mídia. Não se pode vencer o
tráfico de drogas nas favelas, nem com tanques de guerra, nem mesmo com
bombas atômicas. Por um motivo muito simples: os donos do negócio não
estão lá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário