Serra como instrumento de punição às mulheres que defendiam o aborto, na Idade Média |
Lambido de Brasília, eu vi
Fernando Henrique Cardoso é hoje um velho solitário de Higienópolis,
por onde zanza, esquecido, entre moradores indiferentes. Pelas ruas do
nobre bairro paulistano, FHC nem curiosidade mais desperta nos
transeuntes, embora muitos deles o aceitem como mau professor da aula
magna do neoliberalismo ainda ensaiada, agora em ritmo de Marcha sobre
Roma, pelo candidato José Serra, herdeiro político a quem despreza.
Serra escondeu Fernando Henrique ao longo de toda a campanha eleitoral
para só resgatá-lo quando, desfeita qualquer possibilidade de uma
vitória digna, os tucanos embicaram em direção à vala golpista do
moralismo anti-aborto, do terrorismo religioso e da malandragem política
que faz de demônios miúdos símbolos sagrados da cristandade.
FHC é ateu, embora tenha passado seus oito anos de mandato
escapulindo das patrulhas religiosas, diga-se, sem muito esforço,
apoiado que era pela mídia e pelas representações do grande capital.
Era, por assim dizer, um santo do pau oco ostensivamente tolerado por
cardeais do PFL que o controlavam, beatos interessados em dividir o pão
das estatais a preço de banana ao mesmo tempo em que vendiam
indulgências políticas aos cristãos-novos do PSDB, estes, alegremente
ungidos pelo papa ACM I, o Herético. Não por outra razão, céu e inferno
se moveram, em conluio, para esconder na Espanha o filho bastardo de
Fernando Henrique com uma repórter da TV Globo enquanto durasse, na
Terra, o reinado do príncipe dos sociólogos. Assim foi feito. Fiat voluntas tua.
Anjo caído na Praça Vilaboim, FHC não é mais sombra do que era, pelo
contrário, circula entre os mortais a remoer, aqui e ali, a mágoa de ter
sido esquecido pelos que tanto comeram em sua mão. Mesmo agora, que
Serra, abençoado pela Padroeira e batizado nas pias da TFP, encorajou-se
a falar das privatizações, o velho ex-presidente sabe que, para ele,
mesmo as semelhanças se tornaram distantes. Porque se FHC se moveu para a
direita pelo viés econômico, embalado pela onda mundial da globalização
made USA, Serra decidiu se jogar no precipício do fascismo sem
máscaras nem rede de segurança, disposto a arreganhar os dentinhos para
defender os fetos que Dilma Rousseff pretende assassinar, segundo
avaliação criteriosa de Mônica Allende Serra, postulante ao cargo de
primeira-dama e, provavelmente, ao de inquisidora-mor do Santo Ofício
tucano.
De alguma maneira, no entanto, nos passos solitários que dá entre a
banca de jornal e a padaria da dourada comunidade onde vive, Fernando
Henrique Cardoso deve ter lá seus momentos de depressão mundana, ainda
que, movido pela vingança, nada faça para conter a insensatez e o
ridículo de seus correligionários e velhos companheiros empenhados, no
alvorecer do século XXI, a jogar a política brasileira nas trevas da
Idade Média. Faria melhor, na quadra da vida em que se encontra, se
barrasse, com a autoridade que lhe resta, essa cruzada insana.
Fernando Henrique sabe que foi graças a ele, às alianças e escolhas
que fez, que o PSDB, força política nascida como anunciação de novos
tempos de ética e de igualdade social, transformou-se na trombeta do
apocalipse da Opus Dei, seita fundamentalista católica onde se ajoelha e
reza o governador eleito de São Paulo Geraldo Alckmin.
Não é possível não lhe vir, lá no fundo do peito, um quê de amargura
ao vislumbrar o quão graúdas e salientes se tornaram as serpentes que
plantou em ovos na democracia brasileira, sobretudo a mais virulenta
delas, em plena e venenosa atividade, entocada no Supremo Tribunal
Federal.
Talvez seja a hora de FHC se confessar. (Leandro Fortes)
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